Tenho e tive sempre medo de andar de avião. A queda do A320 da GermanWings não contribui para o apaziguar. Levanta interrogações e questiona muitas certezas, em particular aquelas que servem para animar quem, como eu, teme viajar nas maravilhosas máquinas voadoras:

Dizem que é mais seguro andar de avião do que nadar com tubarões; bem, não é bem assim, mas um post de 2011 no National Geographic calculava a possibilidade de ser morto por um tubarão numa em 3,7 milhões de hipóteses. A de morrer num acidente de aviação é de 1 em 11 milhões! Vejamos a comparação com outros meios de transporte:

Por cada 100 milhões de passageiros aéreos, morre 0,01. Em autocarros ou comboios, a ratio é 0,05. Nos nossos fantásticos, modernos e super-seguros automóveis, o valor sobe para 0,72 por 100 milhões de pessoas.

Ah, e outra percepção comum, a de que toda a gente morre nos acidentes de avião também não estará correcta: 95,7% das pessoas sobrevive a um acidente aéreo e, mesmo se contabilizados os mais graves, a taxa de sobrevivência mantém-se alta, nos 76,6% (o número desce muito quando referido apenas a acidentes fatais). Dizem-nos isso e entretanto cai um avião nos Alpes com 150 seres humanos a bordo. E recordamos aqui tão perto (no tempo) o desaparecimento inexplicado do Malásia MH370 ou a queda do MH17 da mesma companhia abatido sobre a Ucrânia (do céu caíram anjos).

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O receio de voar é, para todos os efeitos, uma fobia – o medo irracional de qualquer coisa ou situação que representa pouco ou nenhum perigo real. Mas no momento em que o meu avião, ainda sentado na pista, começa a aquecer os motores, sinto um calafrio e uma súbita sensação de impotência. E se o avião não consegue ganhar altitude? E se falha um motor? E se um bando de pássaros invade as turbinas? E se aquele piloto com aspecto decente que vislumbrei no cockpit, de repente, sente um impulso suicida?

Esta última possibilidade, na verdade, não ocorreria à maior parte dos (temerosos como eu) passageiros aéreos até recentemente; mais exactamente, até Andreas Lubitz ter decidido acabar com a sua vida. Lubitz não se suicidou, tal como não se suicidam os fanáticos da jihad com os cintos carregados de explosivos, mas assassinou 149 pessoas, o que faz dele um dos grandes assassinos em série da História. Vem de longe a história do grego Heróstrato que em 356 ac. destruiu pelo fogo o templo de Artemisa, em Éfeso, uma das sete maravilhas da Antuiguidade, com um único fito em mente: ficar famoso.

Seria fama à Heróstrato o que buscava Lubitz? Provavelmente nunca o saberemos, mas nem é provável, pois se assim fosse deixaria pistas claras ou tê-lo-ia anunciado directamente do cockpit que ocupou até ao momento da colisão fatal. Resta, e foi abundantemente glosada, a questão da depressão ou estado mental do co-piloto e das suas possíveis consequências. Duas dúvidas numa só que, de imediato transformadas em certezas, deram azo a todo o género de conclusões: Lubitz teve uma depressão, estava depressivo, autorizaram-no a pilotar e ele matou todos os passageiros e colegas.

Talvez. Perguntem aos psiquiatras (eu não sei) que riscos acarreta deixar alguém nesse estado ou condição pilotar um avião (ou conduzir um autocarro, manejar uma grua, sei lá). Mas atenção, explicou o Guardian e o Observador retomou-o, a depressão por si só não explica o sucedido e não pode ser diabolizada. Explicações facilmente mediatizadas, para além de não devolverem a vida às vítimas, só servem para lançar a confusão e o anátema (neste caso) sobre a depressão. Todos conhecemos vítimas suas e não consta que a esmagadora maioria represente um perigo para quem quer que seja.

Olho a porta blindada da cabina e tento adivinhar, com nenhuma hipótese de êxito, o que vai na alma dos dois homens (ou mulheres) em cujas mãos repousa o meu destino. Não me preocupa tanto o suicídio mas os inevitáveis e frequentes erros humanos que os relatórios tantas vezes relatam. Reflicto: blindou-se uma porta para impedir os terroristas de entrar, quem não pôde entrar foi o comandante, morreram 150 pessoas. Provavelmente nunca será possível controlar todos os factores de risco, sendo o principal o humano.

Entre 1950 e 2010 terá havido 1.015 acidentes fatais em aviões comerciais com mais de 18 passageiros. Ora a percentagem de casos em que a causa dos acidentes é imputável ao piloto mantém-se estável de década para década: entre 44 e 57%, mais do que por falha mecânica, mau tempo ou sabotagem combinadas. Mas as estatísticas também me falam de um constante aumento da segurança (ver aqui): diminui o número de acidentes, diminui o número de vítimas mortais.

Olho a pista onde o meu avião vai pousar e sinto um nó na garganta, indelével sinal psicossomático do receio que me habita. Mais de 500 quilómetros de viagens aéreas depois bem podem insistir sobre a segurança em que viajo. Ali sentado, a contrariar a lei da gravidade 10 mil metros acima de um solo hostil, continuo a sentir-me um animal sem asas.

O que aliás sou. E mesmo que o maior risco corrido neste dia seja a caminho de casa num táxi guiado por um motorista que anda naquilo há quinze horas, ainda é de alívio o sentimento que me invade ao sentir o chão debaixo das muitas toneladas do monstro de metal que me trouxe de tão longe.

Professor do Instituto de Estudo Políticos, Universidade Católica de Lisboa.