Entre janeiro e setembro de 2024 foram violadas 344 mulheres em Portugal. São 38 por mês.
Não vou ligar isto à imigração, mas como cidadã tenho direito a exigir que esta análise seja feita pelas autoridades competentes.
O que sim, faço imediatamente, é ligar estes dados a uma cultura machista formatada para reagir à violência contra as mulheres olhando apenas à reparação e não à prevenção. Inconsciente e conscientemente o papel que nos reservam é sempre o de vítima.
Este artigo fala só sobre violência contra as mulheres, porque os números que lhe deram origem foram divulgados pela Polícia Judiciária no Dia Internacional de Eliminação da Violência contra as Mulheres, certa de que há muitas vítimas de violência por outros motivos que não ser mulher. Mas não vou relativizar. Somos uma maioria que sofre consistentemente todo o tipo de violência.
Fala do PSD e do PS porque, para já e historicamente, são os partidos portugueses de massas, totalizando 56% dos votos.
Para que não haja dúvidas, todo o apoio tem de ser dado às mulheres vítimas de todo o tipo de violência, que não se esgota na doméstica: mulheres violadas, 15 mulheres foram mortas nos primeiros três trimestres de 2024 em 18 homicídios em contexto de violência doméstica, aliás 25 foram mortas até novembro; 630 mulheres foram assassinadas em 20 anos!; analisando conjuntamente os dados dos femicídios e das tentativas de femicídio, 50 mulheres sofreram um atentado à sua vida em 2024, quase cinco por mês. Antes disto a vida foi provavelmente um inferno, porque as vítimas sofrem várias outras formas de violência prévia, que incluem, muitas vezes, ameaças de morte. Há também as que levam pancada todos os dias e não entram nas estatísticas; as que sofrem assédio laboral, este então todos fazem de conta que não veem, psicológico e físico, as que são apanhadas na sextorsion porque, claro, uma mulher que gosta de sexo ou se expõe é uma desavergonhada e paga um preço por isso.
Portanto, crime de violência doméstica prioritário na investigação criminal, mais casas de acolhimento, apoio às rendas, transportes, apoio às famílias, autonomização do crime de exposição à violência doméstica de menores e pessoas particularmente indefesas, financiamento às ONGs, videovigilância, canais de denúncia, tudo, tudo, tudo é exigido.
Mas a tendência é de subida. Há mais denúncias felizmente, mas também se torna cada vez mais inexplicável que esta situação se mantenha. Todas as medidas acima, mais campanhas e conferências manifestamente não têm chegado. E há que perguntar porquê?
Há outra violência, quase um crime continuado, que é exercida contra as mulheres diariamente que é a de alimentar a nossa imagem como o sexo fraco porque é sobretudo essa imagem que cria o ambiente propício a quase todos estes crimes.
Nós somos 5.556.158, cinco milhões quinhentos e cinquenta e seis, cento e cinquenta e oito, ou éramos em 2023. E continuamos a ser mais mal pagas, a ter muito menos acesso a cargos de topo e a melhores salários e, consequentemente, somos mais pobres enquanto no ativo, ficamos com reformas mais baixas, a suportar o fardo maior de trabalhos não remunerados de cuidadoras, etc, etc, etc. Este empobrecimento e secundarização tornam-nos, a todas, vulneráveis física e psicológicamente. Continuando, como é eternamente o caso https://cnnportugal.iol.pt/salarios/igualdade-salarial/nao-sao-as-habilitacoes-nem-o-esforco-as-mulheres-ainda-ganham-menos-do-que-os-homens-so-por-serem-mulheres/20241114/673380f5d34ea1acf2708aab, é precisamente o tipo de motivos que nos levam a votar no Chega.
É preciso fazer mais qualquer coisa e comecemos pelo Estado que legisla, governa, administra e fiscaliza e nisto usa os nossos recursos, inclusive os das mulheres que pagam impostos, ou que, não pagando, de uma maneira ou de outra contribuem para a sociedade portuguesa. O Estado tem a obrigação de dar o exemplo. Porque é que o Estado empancou, como um disco riscado, em medidas reparadoras, mas ignora as empoderadoras?
Alguém tem de trabalhar para que o Estado faça aquilo para que foi criado e que nós lhe pagamos para fazer. O aparelho do Estado é controlado pelos partidos políticos. No Portugal democrático, salvo raras bolsas, o PS e o PSD mandaram sempre no Estado. E os homens mandaram histórica e esmagadoramente sempre em ambos. Não é vitimização, é um facto. Teremos alguma culpa, mas temos muitíssima mais impotência que culpa.
Há algumas coisas que se podem fazer, e que só os eleitos/nomeados podem fazer, no que diz respeito à máquina do Estado:
- Na regulação da lei do lobby que atenção será dada a grupos de interesse que não aceitam mulheres ou não as aceitam como iguais? São centenas de notícias sobre a Maçonaria e o Opus Dei, para falar de grupos muitíssimo influentes, como esta e esta (Opus Dei leaders accused over ‘extreme exploitation’ of women in Argentina).
- Quantos membros destas organizações, ou de outras semelhantes, ocupam lugares no aparelho do Estado seja em órgãos executivos, consultivos, nas estruturas administrativas, nas administrações direta e indireta, no Estado central ou local, nos organismos maioritariamente financiados, apoiados ou dependentes do Estado? Trazem as mesmas práticas e filosofias para as funções que exercem? Porque é isto relevante? Porque puxam uns pelos outros e são só homens a puxar por homens sempre. Ou pelas famílias. Há momentos em que o Estado parece “O Meu Estado Lda./SA”.
Ou a lei do Lobby só vai regular o poder da Associação Nacional dos Fabricantes de Janelas Eficientes? (nada contra a Anfage, muito inteligente até porque só “lobbyando” se consegue alguma coisa).
- Dentro dos partidos: obrigação de listas com sexos alternados nos órgãos internos e cabeças de lista com sexos alternados a cada dois mandatos; o Secretário-Geral do Partido Socialista não acha estranho que as 19 federações do PS tenham 19 homens a presidi-las? E o Presidente do PSD não acha estranho que todos os principais órgãos e cargos políticos do partido sejam presididos/ocupados por homens?
“Ah, as mulheres não querem…”. Porquê, vocês apoiariam? Nestes anos todos que governaram legislaram para que as mulheres pudessem compatibilizar melhor a vida pessoal e profissional?
É como no discurso do Malcom X: não conseguimos nada sem a permissão, neste caso, dos homens.
- Mudança da lei e listas para os Parlamentos Nacional e Europeu e para os órgãos autárquicos com sexos obrigatoriamente alternados, já que aparentemente temos um problema de literacia entre os dirigentes políticos porque onde a lei diz – “1. Entende-se por paridade a representação mínima de 40 % de cada um dos sexos, arredondada, sempre que necessário, para a unidade mais próxima. 2 – Para cumprimento do disposto no número anterior, não podem ser colocados mais de dois candidatos do mesmo sexo, consecutivamente, na ordenação da lista”, eles leem “serão obrigatoriamente colocados dois homens e uma mulher, consecutivamente, na ordenação da lista;
- Quantas mulheres serão cabeças de lista nas autárquicas?
- Manter a tendência de governos paritários quer em ministros, quer em secretários de estado;
- Empresas públicas e municipais com obrigatoriedade de mandatos alternados, contando o mandato já em curso porque, se não, já se sabe, lá fazem as nomeações na véspera da lei entrar em vigor, adiando a chefia das mulheres para as calendas. E, se cair durante o mandato por qualquer motivo, o próximo terá de ser chefiado por uma pessoa do sexo que vinha a seguir;
- O mesmo para todos os organismos/cargos com nomeação feita pelo Estado;
- Exigência de paridade nos órgãos executivos das empresas ou qualquer tipo de instituição que receba fundos públicos nacionais ou comunitários; Escreve uma pessoa que ao longo da sua vida profissional já viu, ouviu e passou por algumas coisas:
- Ouvir coisas patéticas: gosto muito de trabalhar com mulheres. Toda a minha equipa, que eu (homem) chefio, é constituída por mulheres; ou, gosto muito de mulheres, tenho duas filhas. Espero que no tempo delas já não exista este problema (no tempo delas, não no deles porque isso punha em risco o poder que têm);
- Homens a babarem-se para cima de mim; pedir uma reunião e marcarem-na para casa; amantes, namoradas e namorados que ganham um poder fático, ou de direito, no contexto laboral;
- Homens alvo de queixas de assédio ou violência são afastados para posições diferentes, ou exilados, e quantos voltam mais tarde, com mais poder;
- Ouvir outras coisas como “mulheres não são para repetir na lista de deputados” para não ganharem notoriedade; ou, pomos esta ou aquela mulher a deputada para o marido ter uma casa em Lisboa; o único respeito que a mulher lhes merece é o facto de ser mulher de, independentemente do que possa valer;
- Desde que as mulheres são concorrentes, a tentativa de nos abafar, esconder; o clássico bullying “mulher difícil” cada vez que nos impomos profissionalmente;
- A partir de determinada altura, reservam-nos os papéis técnicos. Os homens são os políticos – como que inatamente, mas na verdade à força de tantas nomeações acabam políticos -, as mulheres são técnicas;
Isto tudo resulta em coisas patéticas como, por exemplo, só termos, muitos!, homens a candidatos presidenciais. Como se nomeiam, chamam e apoiam uns aos outos ao longo da vida claro que depois só esmagadoramente os homens têm currículos para estes cargos.
Muita direita, a minha área política, sou PSD, dirá que isto é política identitária e que estou a alimentar a agenda de esquerda. Mas deixem que vos diga, historicamente, só homens, em todos os cargos, durante muito tempo, qualifica como “posições políticas baseadas nos interesses e nas perspetivas de um eixo identitário ou de género” (não faço um desenho, mas gostava de ter aqui uma fotografia do João Porfírio para ilustrar isto). Mas a causa da direita não é mais importante do que o fim da violência contra as mulheres.
A esquerda dirá que o segundo parágrafo deste texto alimenta a agenda do Chega, até porque, claro, uma pessoa de direita é, com certeza, racista, mas nunca feminista. Não importa, a causa da esquerda não é mais importante do que acabar com a violência contra as mulheres.
Caladas, estamos a perpetuar a sina das escravas que se submetiam aos senhores, das empregadas domésticas que foram abusadas, das operárias das fábricas que eram forçadas, das mulheres que trabalham em casa sem salário e ficaram totalmente dependentes dos maridos, de todas as profissionais que se encontraram em situações degradantes ou de impotência e de todas as mulheres que bateram em todos os tetos deste mundo e não conseguiram concretizar os seus sonhos, nem trabalhando, nem desunhando-se, simplesmente por serem mulheres. Todas o fazemos, calamo-nos em algum momento, carregamos esta espécie de sorte, porque, no fim, temos contas para pagar, casa e famílias para manter e no supermercado os preços não são mais baratos para as mulheres, nem nos farão descontos na velhice por as nossas pensões serem mais baixas. Mas há de tudo entre as vítimas de todas as violências de que vos falo acima: familiares e amigas, conhecidas, de donas de casa incansáveis, a advogadas brilhantes, a artistas de sucesso e todas conhecemos alguma de nós que passa por isso.
Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos não eram, até há pouco, nem primeiro-ministro nem secretário-geral do PS. Mas agora são. Têm na mão um governo, o primeiro, uma sessão legislativa em curso e umas eleições para o ano. Os outros partidos também. O Bloco e o PAN fazem o seu papel, a IL podia fazer mais. Vocês têm obrigação de dar o exemplo e influenciar o resto da sociedade. Não podem continuar a usar os nossos recursos contra nós, para nos excluírem ou menorizarem. Não espero que as mentalidades mudem num ano. Mas os números de 2026 serão, em parte, da vossa responsabilidade. Nessa altura poupem-nos às campanhas, às conferências e aos tweets.
Por último, onde anda a Secretária de Estado da Igualdade?