A tendência mais recente no espaço político e mediático, sendo que “recente” já leva anos, é marcadamente a do exagero. Se preferirem, a ausência de realismo.
Tem sido assim, muito agudamente, com a pandemia em curso. Uma enorme crise de saúde pública, uma sindemia, serviu também para reforçar a força do exagero.
A minha perspetiva é de que há lugar a pôr os pés na terra.
A parte menos edificante das comemorações do campeão nacional de futebol deveria ter servido de lição para que o modelo da final da Liga dos Campeões não fosse uma repetição, para pior, dos acontecimentos de Lisboa. Não foi assim e, tal como se passou em Lisboa, os responsáveis atiram culpas para todo o lado e ninguém aparece com os pés na terra. Vá lá que já não se lembraram de vir dizer que esta final tinha sido mais um prémio para os profissionais de saúde. Mas já chega, estamos mais do que fartos do discurso governante de que há sempre lições a colher com o que corre mal, sem de que dessas lições mude alguma coisa. Como estamos fartos de que se oiçam coisas tão estapafúrdias como o turismo se ter confundido com os hooligans, razão pela qual as “bolhas” de contenção – devem ter tirado esta ideia do “bubble boy” – não funcionaram. Tal como, sem pés na terra, não se pode contemplar um falhanço e dizer complacentemente que “a maior parte das coisas correu bem”. Enfim, na dúvida manda-se fazer um inquérito. Quando será que deixam de nos achar parvos? Parece que não será ainda este mês, a avaliar pelos pés na “Terra do Nunca” com que se planeiam várias (dis)soluções para as festas dos Santos.
Porque só mesmo se fossemos parvos, é que iríamos acreditar que a prorrogação dos contratos daqueles que já estão no SNS, mesmo que só pela pandemia se tenha percebido que faziam falta, é aumentar os quadros de profissionais. E só por levitação crónica é que os nossos governantes, os do voo das vacas, ainda não perceberam que a crescente sangria de profissionais de saúde para o sector privado e estrangeiro se deve a salários que não recompensam o esforço. Não é uma questão de os salários do SNS não serem competitivos. Isso já foi. Hoje não remuneram. Para competirem deveriam estar aproximados do que outros pagam e nem isso estão. Tal como só os parvos de ideias é que não se indignam com notícias de que a frota do INFARMED não poderá continuar a sua renovação por se terem gasto as verbas em equipamentos de proteção. Então, não há matéria para uma bazucada? Não, nada disso. Haja dinheiro para estradas porque as ambulâncias não fazem falta.
E o cúmulo do meu repúdio, com os pés bem firmes na terra, vai para quem disse que a pena de morte para pedófilos seria justificável pela incurabilidade da “doença”. Há mais incuráveis para mandar matar?
Da mesma forma, a propósito das restrições resultantes das medidas de controlo pandémico, já seria altura de se perceber que uma coisa é a liberdade, seja de expressão, opinião ou de afirmação, e outra coisa são as necessidades da saúde pública e a génese das condições mínimas para que o direito à proteção da saúde seja garantido. Com os pés na terra já é tempo de nos entendermos acerca de que em política de saúde a liberdade de cada um não pode, em nenhuma circunstância, sobrepor-se ao bem comum. Se assim não fosse, talvez nem fosse preciso código da estrada ou regulamentar o porte de armas. Claro que há países onde, em nome da liberdade, se acha preferível manter o sacrossanto direito à perpetuação do far west do que procurar evitar 15 mil assassínios e 24 mil suicídios com arma de fogo em cada ano.
Mas há liberdades que são essenciais para a saúde pública. Uma das mais importantes é o direito à informação. Não me canso de repetir que o maior inimigo da saúde é a ignorância. Mais uma vez, com pés na terra, é preciso que não nos deixemos iludir com a perspetiva de legislação que nos limite o direito a ler, ouvir, julgar e aprender. Censurar, seja como for, é combater a promoção da saúde e a prevenção das doenças.
A desinformação só se combate com mais e melhor informação. A internet tem riscos, certamente, mas é a ferramenta mais importante de formação e divulgação de conhecimentos que alguma vez existiu. Depois do controlo da informação vamos assistir à censura de mass media e à proibição de livros em Portugal? Acho que já faltou mais. Cá está uma causa bem mais importante do que protestar contra as máscaras que se têm demonstrado bem úteis. Ou acham que tem havido menos infeções das vias aéreas porque o SARS-CoV-2 comeu os outros vírus e bactérias?
Em Portugal, é habitual a pessoalização para o pior e para o melhor. Infelizmente, é mais comum a tendência de recorrer ao insulto em vez de criticar para facilitar a mudança. Do lado contrário, sempre que alguma coisa corre melhor, é normal atribuir o êxito a um novo Messias. Sem colocar em causa os méritos do atual responsável pelos aprovisionamentos e distribuição, a que resolveram chamar “coordenador”, do plano de vacinação para a Covid-19, da mesma forma que é legítimo perguntar se o mesmo resultado não poderia ser obtido por um responsável de logística de uma rede nacional de supermercados e, desejavelmente, sem a mise en scène dos camuflados, é fundamental reconhecer que o que corre bem se deve a uma grande quantidade de profissionais de saúde que estão perigosamente a ser ignorados. Digo-o com a mesma convicção de que o recente sucedido com o atropelo de marcações online não deve ser imputado singularmente a ninguém.
Isto vem a propósito de que é preciso pôr os pés na terra e perceber que a nossa campanha de vacinação está atrasada e é ainda muito insuficiente para as necessidades. Até poderá ser porque as vacinas que temos recebido não têm sido suficientes. Podemos escabulhar causas, mas a verdade inelutável, de pés na terra, é que a promessa de ter 70% da população vacinada em agosto é insuficiente até porque essa meta será tardia. E, não esqueçamos, há um risco real de que as vacinas de que dispomos se demonstrem com efetividade limitada face às mutações virais que forem surgindo. Repare-se como esta hipótese tem sido menos discutida do que repescar se os professores foram, ou não, objeto de desperdício na imunização.
Não acredito que os episódios das comemorações do final do campeonato, nem as pedradas entre polícias e sportinguistas ou dos pugilatos entre mancunianos e londrinos, venham a ser os motores de nova explosão epidémica de SARS-CoV-2. Haja bom senso no prenunciar de catástrofes. Mas também convirá que, com os pés na terra, face à expectável falta de efeito causal que se possa atribuir aos ajuntamentos de pessoas, também não se conclua que já não há necessidade de medidas higiénicas de aplicação generalizada, por exemplo, máscaras, lavagem de mãos e algum recato na formação de multidões. Mais uma vez, com os pés na terra, não vale a pena acreditar que é por haver mais testes que vai haver menos transmissão de infeção. A relação entre testes e diminuição de novos casos, objetivo a médio prazo, só faria sentido se cada caso fosse alvo de tratamento específico e isolamento profilático. Não é o que se passa. Até porque o Parlamento, entretido a legislar mal ou a elaborar sobre matérias laterais, ainda não conseguiu produzir uma lei que substitua o expediente legal de aprovar “estados de emergência” ou similares. Posso estar enganado, mas no próximo inverno lá vamos voltar ao mesmo tipo de subterfúgios legais. Um pico nos “intensivos”, volta o pânico da Alameda à João Crisóstomo e lá vão todos para o Júlio de Matos, quero dizer para o INFARMED, que co-habita no mesmo Parque, montar conciliábulo inconclusivo. Todos de pés no ar.
Com pés na terra seria não misturar prevenção de pandemias com destapar de ribeiras urbanas. É caso para lembrar que, em caso de dúvida, é sempre melhor perguntar a quem sabe do que mandar fazer a quem ainda anda a tentar aprender. A saúde pública precisa muito mais do que uma revolução moral. Precisa de boa educação e de bons valores, não discuto, mas daí a revolver a moral ainda irá algum exagero. Diria mesmo, com senso comum e pés na terra, que mudanças esperadas para daqui a 50, 100 ou 200 anos, dificilmente serão vencedoras em eleições para daqui a menos de seis meses.
Tal como, com os pés na terra, não vale a pena julgar que acreditamos no “azar” de quem esturricou milhões para só lhes restar um palheiro. Haja decoro. O mesmo decoro com que não se poderia cometer o “lapso” de agradecer a uma tabaqueira o apoio na instalação de uma unidade de cuidados intensivos. Ao tabaco aplicam-se taxas, restrições e dissuasões, não se lhe agradece por matar pessoas.
Vivemos tempos interessantes. Não é sempre assim? Tempos que também se definem por um exagero que as tecnologias das comunicações agora amplificaram e, talvez por isso, há quem delas tenha medo. No fundo, por mais que nos queiram dizer o contrário, as ferramentas mudaram, mas a natureza humana continua igual. Ao menos que haja uma certeza. Tão certo como ser preciso pôr os pés na terra.