Em vinte anos de ofício, nunca me importei de ser insultado. Por curiosidade antropológica, limito-me a reparar no tipo de insultos, que em geral hesitam entre chamar-me nomes feios e jurar espancar-me, além de outras pedagogias democráticas. Nos últimos dias, reparei numa linha insultuosa diferente: dezenas de criaturas decidiram que não sou patriota. Na verdade, jamais fui. Mas, por algum motivo, jamais alguém usara essa característica para ofender a minha estrangeirada pessoa. Agora passaram a usar. Vários cidadãos aconselharam-me a sair do país (é o “Brasil, ame-o ou deixe-o”, em voga durante a ditadura militar), dois ou três apelidaram-me de Miguel de Vasconcelos e um sugeriu mesmo que eu fosse julgado por traição. O que motivou tamanha insurgência nacionalista?
Pelos vistos, o facto de eu ter escrito umas opiniões menos abonatórias acerca das sumidades que conduzem a guerra (o termo não é meu) contra o vírus. Quem não está com as sumidades está a favor do vírus. Ainda que o prof. Marcelo tenha trocado as lides domésticas por “intervenções” diárias de uma vacuidade desgastante, não se deve criticar o senhor presidente. Ainda que a senhora da DGS e a “tutela” da Saúde sejam exemplos raros de desorientação, dissimulação e inépcia, não se pode criticar as estarolas em causa. Ainda que o dr. Costa actual não se distinga do dr. Costa de sempre, um habilidoso para consumo do Terceiro Mundo, não há qualquer hipótese de criticar o dr. Costa sem despertar a fúria de uma multidão raivosa.
Claro que parte da multidão é constituída por avençados do PS, arregimentados para denunciar os hereges que divergem da doutrina oficial. Porém, também me vi insultado por sujeitos recente e genuinamente convertidos aos méritos das “autoridades”. Não admira: o português não aprecia destoar. E se a exaltação dos “media” em volta do prof. Marcelo tem sido discreta, que porque não haja grande interesse em promovê-lo, quer porque a actuação de Sua Excelência embaraça até os maiores bajuladores, os “media” não se poupam a transformar as donzelas da Saúde em heroínas sem sono e o dr. Costa num estadista.
O caso das donzelas, “guerreiras” que estão há mês e meio para acertar numa conta, num esclarecimento ou numa decisão, é apenas o “branqueamento” do desnorte. O caso do dr. Costa é fascinante. Embora o comportamento do dr. Costa D.C. (Depois do Covid) se mantenha igualzinho ao do dr. Costa A.C., o “komentariado” descobriu aqui um pretexto para elevar a glorificação do primeiro-ministro a níveis de ridículo desconhecidos. Quando o dr. Costa mente sobre a capacidade de um SNS em ruínas, o “komentariado” ignora. Quando o dr. Costa solta uma bazófia sobre os europeus que produzem e poupam e não partilham, o “komentariado” rebenta de entusiasmo, a louvar a “dignidade” de um mendigo grosseirão. Os fiéis mais zelosos, com a coluna vertebral em frangalhos, asseguram que o dr. Costa “está a trabalhar para a História” (pela minha saudinha) e comparam-no a Churchill.
Num momento particularmente grotesco, Churchill, perdão, o dr. Costa visitou a “casa” da “Cristina”. A ralé é fechada em apartamentos, o dr. Costa ciranda à vontade, quer para inaugurar “hospitais” equipados com imitações do Ikea, quer para participar em programas de variedades. Mediante guinchos, a apresentadora, um portento com unhas roxas e a convicção de que o Brasil possui “biliões de pessoas”, cumpriu o prometido: uma sessão de propaganda. E o dr. Costa não desperdiçou a oportunidade. Disse que “não se pode pôr em causa a seriedade técnica da DGS” (não se pode, ouviram?). Disse que “devemos fazer o que diz a DGS” (que diz o que o governo manda). Disse que “as informações são dadas com rigor” (nem comento). Disse que é preciso “manter a pressão na mola” (a mola!). E disse não saber se continuaremos “assim um, dois ou três meses” (ou trinta, que a partir do primeiro já faliu tudo). Feliz, a apresentadora proclamou: “Não há governo e povo – há uma união geral!”.
Se não há união, a ideia é que pareça haver. Se há política, a ideia é que pareça não haver. Nas “redes sociais” crepitam bufos, patriotas e cães de fila das “autoridades”. As polícias obedecem e perseguem incautos. A generalidade dos “media” assume alegremente a submissão ao dr. Costa para combater o vírus, o sr. Trump, o sr. Bolsonaro e um ministro holandês. E os partidos em peso, com excepção de um deputado, permitem o prolongamento e o refinamento do estado de emergência, a trela curta numa população cujo civismo é elogiado por líderes com sarcasmo e sem vergonha. Por regra, a população gosta de trela e adora uma boa proibição. O dr. Costa lembrou que os portugueses “têm sido extraordinários na sua disciplina” – por isso os trata como retardados e os prende em casa, enquanto milhares de carros penetram a fronteira sem esboço de cautela.
Cristina, a apresentadora de variedades, perguntou ao dr. Costa: “Enquanto povo, como é que vamos sair daqui?” Pobres, muito pobres. E oprimidos. O caldo de pânico e abuso criado a propósito do coronavírus está, dia a dia, a destruir uma economia já de si frágil. As medidas para a “salvar” vão encarregar-se de eliminar o resto. No governo e adjacências confessam-se apetites para tabelar preços, nacionalizar empresas, produzir internamente o que antes se comprava à China e todo o rol de alucinações que, num ápice, reduzem uma nação sofrível à miséria absoluta. E isto sob o aplauso de quase toda a gente, tão assustada com um parasita microscópico que despreza a ameaça de parasitas enormes.
Não é só a vida material que não voltará ao que era: salvo um milagre, a liberdade que agora nos suprimem não será devolvida intacta. Os parasitas farejam a fraqueza do hospedeiro, e o medo levou-nos a ceder tudo com demasiada facilidade. O Estado, incapaz de enfrentar uma epidemia anunciada, arrasou em semanas a dignidade de dez milhões de alminhas, na maioria agradecidas pelo esforço. E furiosas com os que não agradecem.