Com as notícias da prisão de José Sócrates a ribombar na sexta-feira à noite, notou-se logo que socráticos e seus satélites teriam oportunidade para exibição pública de choro e ranger de dentes. E, em benefício do entretenimento do país durante o fim de semana, não nos desiludiram.

Alguém que não tivesse vivido em Portugal nos seis anos em que Sócrates governou, com a perversa inversão ética a que o ex-primeiro-ministro e seus adoradores promoveram, concluiria que no Código Penal português o crime mais grave é a quebra do segredo de justiça. Porque isso e a presunção de inocência de José Sócrates foi tudo o que preocupou certas boas almas nos últimos dias. E estarão no seu direito, dir-me-ão, e eu concordo: cada um escolhe preocupar-se com os detalhes que entende. Mas que para tal se dediquem a enlamear tudo o que rodeia a investigação criminal e jornalística, já me merece repúdio.

A prisão televisionada de Sócrates não foi grave pela quebra do segredo de justiça – algo que já nem é regra e só faz sentido para proteger a investigação, sendo que notícia da prisão manifestamente não a prejudica – mas sim porque é indigno perseguir, filmar, fotografar um qualquer ser humano numa hora de aflição.

E quanto à presunção de inocência, haverá alguém que não tenha a opinião já cristalizada quanto à tendência de Sócrates para se mover em situações escorregadias na fronteira entre o legal e o ilegal?

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Mas o mais curioso é que quem tanto se preocupa com a presunção de inocência de Sócrates não tenha pejo em desqualificar Felícia Cabrita (remetida a mera ‘biógrafa de Passos Coelho’ pelo ‘passista arrependido’ – que responde ao nome Pedro Marques Lopes – num programa de televisão onde também participou a ‘entrevistadora de Sócrates’ – jornalista que eu, antes de ter aprendido como corretamente designar pessoas, chamava de Clara Ferreira Alves). É que Sócrates deve ser presumido inocente de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais, mas Felícia Cabrita não tem qualquer direito a ser presumida inocente do crime de difamar Sócrates ao publicar investigações que o comprometam.

E a Justiça? Oh, claro que o grande problema deste fim de semana não foi a possibilidade de um ex-primeiro-ministro ter cometido vários crimes graves. O verdadeiro problema – usando a tal inversão ética tão em voga nos tempos socráticos, em que se defendia algo moralmente arrepiante ao mesmo tempo que se dava lições moralistas a quem discordava – foi a detenção para interrogatório, o juiz, as fugas de informação, a Justiça que quer perseguir (só porque apetece) políticos de relevo para reconquistar credibilidade. Isto, evidentemente, sem conhecerem o processo e sem atenderem aos vários adiamentos da viagem para Lisboa de Sócrates ou à necessidade de realizar buscas em sua casa. Era contra Sócrates, pelo que está mal. Mistério da fé.

(A Justiça é uma calamidade nacional, de facto, e não deixou de ser na 6ª feira. Mas os problemas da Justiça são outros: corporativismo dos juízes, tentação de se intrometerem nas escolhas que cabem à política, casualidade negligente com que tratam os assuntos que estão fora das luzes mediáticas, ego insuflado de juízes sempre prontos a estamparem em sentenças os seus preconceitos e antipatias, lentidão exasperante,…)

Radioativo para a Justiça é, por exemplo, Pinto Monteiro e Noronha do Nascimento – os dois responsáveis pela supressão das escutas a José Sócrates que um juiz considerou poderem configurar um crime de atentado ao estado de direito – indo alegremente à apresentação do livro daquele que beneficiou das suas atuações, sem qualquer pudor ou, sequer, preocupação com a necessidade de protegerem a reputação profissional. (Digo Pinto Monteiro, mas Ferreira Alves e Marques Lopes, depois das notícias de ontem envolvendo o ex-PGR nas escutas, provavelmente chamar-lhe-iam ‘conselheiro de Sócrates’.)

E lá tivemos, no primeiro momento, essa oferta do PS para a posteridade: a tese da cabala. Com a inevitável Edite Estrela a sugerir que se tratava de desviar as atenções do caso dos vistos gold. (Como se se o governo condicionasse a investigação judicial chegasse a existir ‘caso dos vistos gold’ provocando até a demissão de um ministro.)

Em casos como este uma boa memória é imperdoável, diria Jane Austen, contudo talvez seja útil lembrar aquele senhor nomeado por Sócrates para a Eurojust, que fez o obséquio de dar a saber aos procuradores que investigavam o caso Freeport que o então primeiro-ministro havia dito que haveria consequências se o fizessem perder a maioria absoluta. O dito mensageiro teve sanção disciplinar pelo recado e nunca afirmou que inventara as palavras de Sócrates. Também Sócrates, que processou o mundo inteiro que o contrariou e processaria algum extra-terrestre se o apanhasse, não processou quem assim usou as suas palavras.

Sobre quem está habituado a condicionar a investigação judicial estamos conversados.

E é esta a sensação que perdura das críticas ferozes ao processo: os críticos revelam mais a sua visão insidiosa do mundo, a que se acostumaram nos tempos socráticos, do que analisam a realidade – aquela onde a Justiça é desprestigiada pela atuação de tantos socialistas e seus ajudantes. E o perigo vem de podermos ter novamente governantes com esta ética pérfida e amoral. Aí a Justiça deixaria de ter fugas – tal como as economias comunistas deixam de ter crises.