Humildemente pergunto se em 2019 se pode ainda dizer alguma coisa, emitir aqui e ali uma opinião, divergir um tudo nada da maioria do momento (ou da minoria ou da seita)? Ainda? Ou a turba já tomou conta definitivamente do asilo?

Desconfio que Portugal é um case study de pressão dos pares. Por um lado, este estudo de 2016 coloca a iliteracia funcional em Portugal nos 40%. Juntam letras e palavras, mas compreender, népias. Claro que comentam estrepitosamente na mesma. Afinal nada é melhor para ter certezas ruidosas sobre algo do que estar absolutamente desinformado e nem abarcar qual o problema ou as consequências. Por outro lado, fomos educados no Estado Novo (e estes condicionamentos não se sacodem da pele rapidamente) a deixarmos os demais pensarem, abandonarmos as pretensões de individualismo, não fugirmos do rebanho (daquele onde estamos, há vários).

Não se pense que isto é efeito que se abate apenas sobre pessoas pouco escolarizadas. Pelo contrário. Começa a vir de todo o lado, inclusive de pessoas com audiência, influencers digitais ou opinadores, a incapacidade de aceitar opiniões e, pior, factos e desmontagem de falácias. Ou, a minha preferida, a mania de que uma opinião fundamentada vale tanto quanto os palpites de quem desconhece o assunto. Em todos os lados políticos, de resto, mostrando que a natureza humana é igual sem atender a divisões ideológicas.

Não posso dizer os clássicos. Não se pode afirmar que há culturas de países de fora da Europa com hábitos que são atentados aos direitos humanos e à igualdade de género. Em recebendo as pessoas na Europa, devemos ser estritamente exigentes para que respeitem os nossos valores europeus, o nosso modo de vida e, até, que sejam leais aos países que os acolhem. (De resto nada de extraordinário nem exclusivo europeu nem sinónimo de sobranceria de velho mundo. Há umas décadas, Lee Kwan Yew, antigo presidente de Singapura, defendia que os expatriados chineses, e descendentes, deviam a sua lealdade aos países onde estavam em vez de à China.) (Ah, também não se pode dizer que a Europa precisa mesmo muito de receber imigrantes – ou irá empobrecer e definhar.)

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Que não se lembre o enamoramento da esquerda portuguesa com o regime chavista. Até deram o nome a uma rotunda, já depois do ídolo fechar televisões privadas hostis e prender opositores políticos. É de bom tom pretender que não deliraram com cada uma das políticas que levou ao cataclismo económico e social venezuelano.

Não se pode dizer que Bolsonaro é de extrema direita. Então se ele não diz ‘sou de extrema direita’ ou ‘amo Hitler’, claro que os simpatizantes fingem que a recusa dos direitos humanos de parte da população não fez parte do discurso de campanha, ignoram-se os comentários sobre negros e mulheres e gays (não ignoram nada: os simpatizantes adoram estas tiradas) e por aí fora.

Comentar que reputo de igual mérito tanto as propostas da esquerda jacobina para o fim da participação da Igreja nos organismos do estado em que fazem sentido (capelães nos hospitais e exército, por exemplo) ou na discussão política pública, quanto as propostas de luta sem quartel ao politicamente correto (e agora até ter maneiras à mesa ou execrar a violência sexual é politicamente correto) e ao marxismo cultural – bom, estou a pedir levas de insultos.

Referir que alguém que diga que as causas do gender wage gap, ou da ausência de promoção de mulheres aos cargos de liderança e mais bem pagos, são biológicas ou devidas a paragens ou à escolha de profissões ou semelhante é ignorante ou, lá está, iletrado funcional; que há literatura tão abundante que mostra que o trabalho das mulheres é subavaliado, e sempre que entram elementos de subjetividade (que é quase sempre) são prejudicadas devido a preconceitos enraizados – anátema. As palavras de fundamentação duvidosa de qualquer guru valem mais que volumes esmagadores de pesquisa científica.

Mas estamos em tal penúria que nem precisamos de falar de política. Constatar que a amamentação é a melhor forma de alimentar bebés também é catastrófico. Isto insulta as mulheres que não quiseram amamentar e algumas feministas mais hostis à maternidade. Deite-se lá a evidência científica no triturador de papel, porque há sensibilidades a proteger. A descompensação é tal que, uma vez no twitter, fui destratada por uma conhecida psiquiatra da esquerda socrática (o que se esperaria?) porque contei um toque doloroso e abusivo do meu obstretra e defendia a contenção (há abundante argumentário médico) destes procedimentos.

Reclamar que sim, as famílias com filhos – e as mães profissionalmente (incluindo o que aventei uns parágrafos acima) – devem ter tratamento com muito maior diferenciação positiva em termos fiscais, de legislação laboral, de serviços do estado e um valente etc. é uma afronta sem tamanho. Uns não têm filhos, ou odeiam as famílias tradicionais, e não consideram que têm ‘de pagar para os filhos dos outros’. Outros têm apoplexias se existirem medidas que deem razão a reivindicações feministas, marxismo cultural e isto e aquilo. Notar que a baixa natalidade é ‘o’ problema do país, que a segurança social depende de ter no futuro contribuintes que paguem as pensões dos seus pais – e colegas dos pais que não têm filhos –, que se não se facilitar a vida às famílias nem parar os custos profissionais das mulheres com a maternidade não se consegue resolver nada – é inútil. Os sectarismos de quadrantes diversos sobrepõem-se a esta discussão que é quase de sobrevivência.

Não obstante, o bom de se indignar alguém sempre que se dá uma opinião ou se brande um facto é ganharmos gosto por indignar. Quem não se quiser indignar tanto, é usar em 2019 aquelas boas e velhas ferramentas: pensar; informar-se; ler. Sobretudo ler bons livros, de História e de ficção. Podem não ter nada a ver com os problemas concretos, mas são como a matemática: dão os alicerces intelectuais sem os quais mais vale fechar a conta do facebook.