Na semana passada, com a polémica dos cartazes do BE, surgiu uma nova diretiva socialmente correta da vida em sociedade. E eu, com a minha propensão para a pedagogia, não queria deixar de vir reforçá-la; não quero que os leitores do Observador façam figuras de, sei lá, ingleses ou americanos, com a sua mania rústica de escrutinarem ferozmente o discurso dos políticos e dos partidos. Isso, por cá, na nossa democracia avançada, já não se faz.

Fique o leitor a saber: a partir de agora, todo o discurso político só pode ser avaliado à luz da liberdade de expressão. Se os disparates e atentados à inteligência e ao gosto, provenientes dos atores políticos, estiverem (como quase sempre estão) dentro da liberdade de expressão, então o leitor que vá ver telenovelas porque não terá nada a apontar à mensagem que lhe foi transmitida.

Eu explico. Perante um cartaz imbecil do BE, logo um coro de almas puras indignadas se levantou a defender a liberdade de expressão. É verdade. Pessoas particularmente imaginativas compararam até o cartaz do BE às caricaturas de Maomé do Charlie Hebdo.

A defesa da liberdade de expressão do BE foi tanto mais valente pelos bravos paladinos que se levantaram por ninguém ter atentado contra ela. Defender algo que não está em perigo dá boa imprensa e é sempre cómodo. Eu não li nem ouvi ninguém defender a proibição do cartaz do BE. Vi uma petição tonta que exigia a retirada do cartaz sintomaticamente fazendo o pedido a Catarina Martins, vi inúmeros cartazes a gozar com a estultícia bloquista, vi repúdio pelos objetivos do BE.

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Pelo que cabe aqui explicar umas coisas ao BE e aos seus defensores. É que um partido político não é um jornal satírico, nem um cartoon, nem um humorista a fazer graçolas numa televisão ou no twitter. Os limites ao discurso de um partido político – em qualquer democracia funcional – são muito mais apertados do que apenas a liberdade de expressão. Lá por se meter com a religião católica continua a poder desancar-se politicamente o cartaz do BE. Vejamos.

Iniquidade política nº 1. Se é legítimo discutir a Concordata, a atribuição de dinheiros dos contribuintes à Igreja, os feriados religiosos e outros assuntos em que a religião católica se cruza com a coisa pública, já tem de estar fora do discurso político dar palpites sobre o que é estritamente do domínio das crenças individuais e da relação de cada um com o divino. Não aceito que um partido faça política com a família de Jesus, a ressurreição, a relação com Maria Madalena, se quem tem razão no cânone bíblico são os protestantes ou os católicos, a transubstanciação e um largo etc. Tal como não aceito que um partido faça política com as minhas preferências na hora de me apaixonar, com a minha forma de ser mãe para os meus filhos, com as qualidades que valorizo nos meus amigos. A fé é algo íntimo e não aceito que um partido faça política com a minha intimidade.

Iniquidade política nº 2. Ficou bem patente o revanchismo refinado que habita o BE. Deparados com uma vitória política (com a qual, sublinhe-se, eu concordo), o BE revelou que o que lhe interessava não é permitir que crianças institucionalizadas tenham maior oferta de adotantes, mas sim enxovalhar os adversários. Aos vitoriosos fica sempre bem magnanimidade e procura de reconciliação. Mas isso é para as forças políticas que não têm o ódio (de classe, religioso, político,…) como força motriz.

Posto isto, acompanho Helena Matos na sua sugestão para o BE fazer um cartaz com Maomé. Dou já uma ideia concreta. Em 2015 o Parlamento aprovou a proibição dos casamentos forçados. Estes casamentos, por esse mundo fora, envolvem frequentemente crianças. No Islão essa prática é vista com bonomia por Maomé ter casado com Aisha quando esta era criança. Que tal um cartaz sugerindo, usando o alegre casal, que uma prática do século VII não é necessariamente boa no presente?

Enquanto não fizerem o cartaz por mim sugerido, vou considerar a malta do BE uns medricas. Porque se metem só com a religião que sabem que não lhes periga a integridade física. E atenção que nem sequer são ‘cobardes’, porque afinal a cobardia até pode ter alguma nobreza. Sobretudo quando é ditada pelas circunstâncias dos regimes ideologicamente próximos ao BE. Deixo um exemplo.

Recebi por estes dias The Noise of Time, a biografia de Shostakovitch por Julian Barnes. Ainda não a li, mas as críticas referiam a escolha da cobardia pelo compositor. Cobardia por não se rebelar contra o terror estalinista: não ser cobarde neste caso cobrava um preço muito caro para si e para a sua família. Há uns anos, um professor de Juilliard dizia numa palestra sobre a Festive Overture de Shostakovitch – encomendada para as celebrações dos 20 anos da revolução comunista – que era uma peça profundamente irónica e uma resposta às críticas de ‘formalismo’ que anteriormente as autoridades haviam dirigido ao músico. Talvez esta fosse a rebelião possível. Mas o BE não merece a admiração que se entende à escolha de Shostakovitch.

Regresso ao início. Lembra-se quando considerou inaceitável Jerónimo de Sousa ter desprezado o sucesso do BE nas presidenciais atribuindo-o a ter uma candidata ‘engraçadinha’? Fez mal. O líder do PCP apenas fez uso da sua liberdade de expressão. E quando Sócrates comunicou o resgate do FMI? Nada de críticas por causa disso, que Sócrates tem toda a liberdade de expressão para dizer que o país está falido. Ou quando achou que Costa tinha comido cogumelos suspeitos ao almoço por ter dito… bem, quase tudo o que diz? Não, não, não, faça favor de não diminuir a liberdade de expressão do pm.

Não precisa de agradecer a lição. Foi um prazer.