Temos passado muito tempo a discutir o fim do multilateralismo e da cooperação internacional. Na era de todas as expectativas liberais confundimos uma estratégia (sim, falo do multilateralismo) com ideologia. Nos anos 1990 e 2000 achávamos que as organizações internacionais e as suas normas, regras, preceitos eram por demais relevantes num mundo em que a única grande potência escolheu governar internacionalmente através delas.

Se tivermos em consideração esta ideia, de facto, o multilateralismo acabou. As organizações internacionais foram esvaziadas de fundos, de funções e, especialmente, de sentido. Por exemplo, a NATO já há muito não funcionava tão bem militarmente. Mas já não é uma aliança de democracias. É uma aliança de um conjunto de estados que vêm com bons olhos a contenção territorial e política da Rússia, que já se demonstrou capaz de expansão territorial. Ontem chegavam notícias de que as Nações Unidas se iam reunir pela primeira vez desde que começou a pandemia. Mas as reuniões internacionais que realmente contam agora são as do G20, onde os estados mais poderosos tentam chegar a formas de cooperação sem prejuízo dos seus próprios países.

Por outras palavras, o que acabou foi o multilateralismo liberal a que nos habituamos, no Ocidente, desde os anos 1940 e no mundo desde os anos 1990. Não quer dizer que não volte a existir. Mas está suspenso por tempo indeterminado.

Esta suspensão deve-se a duas razões essenciais: a mudanças drásticas no mundo, que já vinham de antes da pandemia, e à forma como Donald Trump, chefe de estado a maior potência do mundo, escolheu lidar com elas. Não se trata apenas da já tão falada desistência de liderança internacional – talvez a mais perigosa, uma vez que a China é pródiga em ocupar espaços vazios e desta vez não tem sido uma exceção. Trata-se especialmente do tipo de nacionalismo nativista do presidente dos Estados Unidos que o precipitam para outro tipo de cooperação internacional que não conhecemos. E que não nos convém.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Uma das características do nativismo é desconfiança dos outros estados do mundo. Assim, a preferência recai sobre os estados essenciais para, neste caso, no combate à pandemia. Daí que se valorizem reuniões internacionais onde se encontram os mais fortes e aptos para resolver situações de carácter global, como o G20.

Outra das características é que os estados mais confiáveis, ainda assim, são os que têm afinidades históricas e culturais com os Estados Unidos. Enquanto a Europa se zanga com o fecho de fronteiras (como se não fosse assim um pouco por todo o mundo), os Estados Unidos unem forças com os que sentem mais próximos de si. Não é, pois, de admirar que se tenha reavivado o Quad, um conjunto de estados que se reuniu para apoiar a Índia no alívio do Tsunami de 2004 – são eles os Estados Unidos, a Austrália, o Japão, a Nova Zelândia, o Vietname, e a Coreia do Sul – comprometido agora no combate internacional à pandemia e no relançamento das economias quando esta estiver mais controlada.

O que une estes sete estados é a consciência que a liderança internacional passou do Atlântico para o Pacífico (e que a China não pode dar todas as cartas, para o bem de todos), e uma afinidade histórico-cultural que reúne os EUA, a Índia, a Austrália e a Nova Zelândia, a que se juntaram os aliados asiáticos mais próximos (com os quais também há uma história de colaboração mais recente). É possível que seja esta a nova tendência de cooperação. Por poder e por afinidade.

O multilateralismo não morreu. Tornou-se menos frequente e transformou-se. O que mudou foi o tipo de cooperação e os parceiros privilegiados em cada momento. Já não são as organizações internacionais de caráter liberal ou os estados democráticos que estão na linha da frente. São os mais aptos e os mais próximos. E a Europa vai ter de se adaptar, através da sua relevância internacional em temas como a ciência. Esperemos que esteja à altura.