Na última crónica defendi que para que Portugal possa inverter o ciclo estrutural de empobrecimento em que caiu nas últimas décadas necessita de um choque de produtividade, de fazer mais com menos, algo que será mais viável se soubermos aproveitar com inteligência e políticas públicas adequadas o momento de disrupção tecnológica imposto pela revolução digital.
Mas não só. É necessário ainda quebrar com o enviesamento ideológico que amarra as soluções políticas e de governo, preguiçosamente repetidas, eleição após eleição, numa náusea nostálgica e de incapacidade de analisar o tempo em que nos encontramos. Todos os partidos, sem exceção, incluindo os “novos-velhos”, continuam a insistir nas dicotomias “esquerda-direita” e numa análise de confronto (ainda muito influenciada por fórmulas dialéticas) à volta da repetição acrítica do receituário de soluções ideológicas pensadas para responder aos problemas que resultaram, sobretudo, das duas primeiras revoluções industriais.
Recorde-se, foi no período compreendido entre a segunda metade do século XVIII e o fim da segunda guerra mundial (1945) que se consolidaram os modelos de produção industrial, de revolução na energia, nas comunicações e nos transportes, na medicina, que permitiram um aumento exponencial da riqueza produzida e de uma maior integração do comércio global, com consequências significativas na melhoria geral das condições de vida, na estabilização das classes médias, de novas formas de trabalho, da urbanidade e das grandes cidades. Foi também neste período que se consolidaram as liberdades políticas e se tornou relativamente consensual o modelo político liberal – em sentido amplo –, que coloca a pessoa – ou o “cidadão” – no centro da decisão, e se estrutura à volta da ideia da separação de poderes, da supremacia da lei e no sufrágio universal.
Após a segunda guerra mundial vivemos, no mundo dito “ocidental”, um período de grande prosperidade e crescimento, com a construção de um sistema produtivo, monetário e fiscal o qual, aliado à natalidade e à pirâmide demográfica, permitiram a afirmação definitiva de um modelo de sociedade conhecido por ser de “bem-estar”, de forte pendor previdencial e assistencialista (de natureza estatal, corporativa ou privada). O crescimento económico foi acompanhado de disrupções significativas em matéria social, de valores e costumes, e da afirmação de direitos cívicos fundamentais: se o rescaldo da segunda guerra mundial confirmou em definitivo a liberdade económica (a qual, contudo, só se tornou global com o fim da guerra fria), é a partir dos anos 60 que se começam a construir, verdadeiramente, liberdades cívicas fundamentais, o pluralismo, e uma efetiva valorização da igualdade.
Como é por demais sabido, todo este mundo do pós-guerra (sendo, em certa medida, o padrão de todo o século XX) foi feito de conflito, tensões e debate, no confronto entre cosmovisões assentes em ideias políticas conflituantes. A reconciliação das diferenças fez com que as matizes das tendências que assinalo não tenham sido homogéneas ou operado ao mesmo ritmo em todos os locais do planeta. Mas é a este período que tributamos o – ainda – existente sistema monetário, fiscal, de previdência, de organização do Estado, de políticas públicas em setores essenciais com a Educação, Saúde, Previdência ou até Segurança e Defesa, e continuam a ser os pensadores mainstream destas épocas os que inspiram boa parte das narrativas e grelhas do pensamento político atual. Não podemos ignorar que grande parte do modelo institucional que temos, ainda hoje, incluindo o da União Europeia, de Bretton Woods, da NATO ou de regulação do comércio mundial, são emanações do pós-guerra; ou que a generalidade dos partidos políticos que por toda a Europa (mas não só) “continuam por aí” – democratas-cristãos, liberais, sociais-democratas, socialistas, ecologistas, nacionalistas, saudosistas, comunistas ou trotskistas – são emanações da segunda metade do século XX, e foram pensados como resposta aos desafios desses tempos, tendo dificuldade em explicar (e resolver), agarrados aos seus ideários fundacionais, os problemas que enfrentamos no presente.
Não me interpretem mal: nem tudo o que vivemos hoje é disrupção, parte do que foi feito ou pensado no século XX tem interesse ou acrescenta perspetivas válidas para a construção de respostas políticas para o presente. Mais: parte do que foi dito ou pensado nesse tempo, sem as amarras do seu próprio contexto, acrescenta e ajuda de sobremaneira a encontrar respostas para os paradoxos com que diariamente somos confrontados.
Não obstante, e ainda que o pensamento e os valores de base que deram origem aos marxismos, às sociais-democracias, ou aos liberalismos, não estejam – ainda – totalmente esgotados, precisamos, porém, de ampliar as respostas muito para lá das explicações “clássicas”. Sejamos afetivamente de “esquerda” ou de “direita”, não será nos manuais de Keynes ou nas utopias de Marx que encontraremos a solução completa para um sistema monetário e orçamental cuja principal racionalidade assenta no financiamento de défices estatais cujo plafond – a bem da equidade geracional – terá a curto prazo de ser significativamente reduzido, ou que ignora que com fórmulas como a blockchain é (tecnicamente) possível efetuar pagamentos e criar moeda (no sentido de reserva de valor e meio de troca) sem qualquer intermediação entre os agentes. Tão pouco será nas estafadas narrativas da liberdade de escolha para a saúde ou para a educação (ainda que parte dos seus pressupostos permaneçam com alguma validade) ou em visões burocráticas e estatizantes, que encontraremos a solução para o problema fundamental da assistência em saúde, onde o papel da prevenção, dos cuidados continuados, do envelhecimento sem precariedade ou dos cuidados paliativos ganham particular acuidade à medida que a tecnologia dá cada vez mais resposta, prolongando a vida ao mesmo templo que amplia exponencialmente as necessidades. Ou de uma educação para um tempo onde a aquisição de conhecimento essencial estruturante e de autonomia é mais fundamental do que nunca, por ser a única forma de assegurar o desenvolvimento de competências que se irão esgotar e renovar várias vezes, ao longo da vida. Numa altura em que uma carreira profissional normal implicará, com naturalidade, o trabalho em distintos países ou, até, com a digitalização, uma desterritorialização do trabalho, quando já não sabemos bem o que significa trabalhar por “conta própria” ou “de outrem”, soluções de previdência ou reforma que pressupõem descontos para uma instituição estatal de um Estado em concreto, ou o financiamento de Estados com base em impostos diretos, estão a prazo condenadas, obrigando a uma reflexão séria. As relações de trabalho são hoje cada vez mais distintas do que aquelas que conhecíamos há não mais de duas décadas atrás, cada vez mais afastadas daquilo que eram as emanações da luta de classes ou de conceitos de “trabalho desregulado”, não respondendo ao que hoje as novas gerações (e algumas já bem velhinhas) procuram ou ambicionam. A noção de propriedade vive momentos de alguma crise, tendo deixado de ser objeto de desejo para as novas classes médias, que apenas aspiram ao seu usufruto sem o ónus da permanência. O papel das forças armadas e de segurança tem de acompanhar a mudança para um mundo de grandes metrópoles, com elevada pressão migratória, focado na sustentabilidade dos recursos ecológicos e ambientais e que tem na internet e no digital grande parte das ameaças geopolíticas mais difíceis de responder. A própria regulação e a eficácia da lei dependem menos de instituições administrativas, funcionando em rede e cada vez mais dependendo da própria tecnologia.
Dificilmente encontraremos nos vários programas eleitorais respostas satisfatórias para estes – e outros desafios – que são os que marcam o ritmo do tempo presente. Partidos velhos, mesmo os que se apresentam com roupagens novas, agarradas a referências caducas, não são aptos a responder ao que hoje nos é exigido. O debate, esse, acabará por ter de ser feito, “mais-dia-menos-dia”, porque, “semi-parafraseando” Marx, parte da história já estará a ser escrita. Falta saber se o poder político será parte das soluções do futuro, ou um mero empecilho ou problema.