Um dia antes de o Estado português colocar dívida a taxas negativas, o célebre comentador de economia do Daily Telegraph, Ambrose Evans-Pritchard, reparou no que diz o PS – o PS que pretende acabar com a austeridade, como pretendia o Syriza, o PS que promete reverter a privatização da TAP, como o Syriza prometia reverter a privatização do porto do Pireu, ou o PS que garante a reposição das 35 horas na função pública, como o Syriza garantia a readmissão de funcionários. Evans-Pritchard ficou sem dúvidas: no caso de uma vitória socialista em Portugal, a Europa terá uma nova Grécia à beira da saída do Euro. E isto era antes do programa revelado ontem, com os seus aumentos de despesa e diminuições de receita. O que Evans-Pritchard não sabe, porém, é que ninguém em Portugal liga demasiado a estas coisas.
Porque por cá, o cinismo político manda-nos, não ouvir o que é dito, mas considerar quem o diz: e no caso do PS, tudo se reduz a António Costa. Ora, Costa é visto, por consenso nacional, como um “político”, no sentido de alguém de quem se espera que faça e diga tudo e o seu contrário para conquistar e manter o poder. Sim, talvez se tenha permitido umas syrizices no tempo em que o Syriza era moda. Mas depois foi buscar Mário Centeno, um anti-Varoufakis, ao Banco de Portugal. É o que basta para toda a gente por cá descontar os receios de Evans-Pritchard.
O caso é que a oligarquia político-mediática resolveu admitir que o PS e a coligação têm o direito de dizer o que for preciso para se distinguirem entre si e ganharem as eleições. Os mais sábios lamentam ver os partidos a fazer promessas ou a pedir maiorias absolutas em vez de esclarecerem a sua disponibilidade para compromissos — mas interpretam uma coisa e outra como legítimas malandrices de recreio eleitoral. A expectativa é que depois das eleições toda a gente se modere e se entenda. Por isso, ninguém parece preocupado, a não ser o Presidente da República, além de Evans-Pritchard.
Tem o Presidente motivo para estar inquieto? O nosso sistema eleitoral, ao contrário do inglês, não faz maiorias absolutas a partir de um terço dos votos. E na falta de uma maioria absoluta, que razões há para esperar estabilidade governativa? Imaginemos que a coligação ganha, mas sem maioria absoluta. Irá o PS proporcionar-lhe os votos que lhe faltarem? São legítimas as dúvidas. O PS só faz acordos quando estes representam a aceitação pelos outros partidos de uma posição secundária, como aconteceu em 1978 com o CDS ou em 1983 com o PSD. Imaginemos, em alternativa, que o PS ganha, também sem maioria absoluta. Ninguém espera nada do PCP ou do BE. Mas toda a gente espera tudo do PSD ou do CDS. Será assim tão fácil a um líder do PSD ou do CDS obrigar o partido a sujeitar-se ao PS? Em 1978, o acordo não durou, e entre 1983 e 1985, quando ainda não havia os agravos mútuos de agora, a coligação já foi muito difícil, e acabou mal.
No seu artigo, Evans-Pritchard enumerou com gosto as dificuldades do país mais endividado, mais envelhecido, e menos qualificado da Europa ocidental. A economia portuguesa foi a que menos cresceu na Europa do século XXI, mesmo antes da crise de 2008, quando tudo crescia. É verdade: o cumprimento oficial do programa de ajustamento e depois a enorme quantidade de dinheiro barato posto a circular pelo BCE ajudaram os compradores de dívida a esquecer esses pormenores. Mas quanto tempo durará a bonança? Uma campanha eleitoral demasiado ligeira ou uma situação governativa frágil podem subitamente multiplicar a incerteza e as dúvidas, mesmo sem variações do contexto internacional. Daí, a preferência do Presidente por “um governo com apoio maioritário na Assembleia da República”. Mas quase toda a gente resolveu interpretar esse cuidado como uma simples exorbitância de poder em fim de mandato.
O regime não está incomodado. Já ninguém lê os relatórios do FMI. Por enquanto, há dinheiro barato. E para o futuro, os sábios esperam que as perspectivas difíceis descritas por Evans-Pritchard, só por si, imponham responsabilidade e disciplina aos partidos do chamado “arco da governação”. No fundo, confia-se no fantasma da troika, isto é, na pressão externa sobre uma pequena economia aberta. A oligarquia não imagina outra base de governo em Portugal. A questão é esta: para aquilo que é preciso fazer, bastarão o medo e o cinismo? Não serão precisos também alguma visão, alguma esperança?