Tal como todos os políticos, a eurodeputada Ana Gomes chegou a algumas conclusões sobre o caso Sócrates-Salgado. Mas ao contrário de todos os outros políticos, não as guardou para si ou para os seus amigos. Disse-as em voz alta, este fim de semana: “o Partido Socialista prestou-se a ser instrumento de corruptos e de criminosos”, e avisou que quer o congresso do PS a discutir porque foi assim. “Pela regeneração do próprio PS, da política e do próprio país”.
Alguém dirá que é muita coragem para uma militante socialista. Mas Ana Gomes não é apenas a única socialista a dizer o que pensa sobre o caso Sócrates-Salgado. É mais do que isso: é a única figura política, de qualquer partido. Porque a propósito da Operação Marquês, a única coisa que os nossos oligarcas gostam de comentar ao pé do microfone é a “violação do segredo de justiça”, isto é, a publicação pela imprensa das informações que lhe chegam do processo. Sobre isso, não falta a ninguém eloquência. O problema, como é antiga tradição em Portugal, é o “jornalismo de sarjeta”. O Dr. Salazar certamente que estaria de acordo.
Porque é que os outros políticos não dizem nada? Porque o que está em causa no processo Sócrates-Salgado, à medida que o novelo é desfiado pela justiça e pela imprensa, é demasiado grave para a oligarquia se permitir olhá-lo de frente. Não é um episódio isolado de corrupção pessoal, mas um sistema, um “mecanismo”, em que um chefe de governo e um dos maiores banqueiros do país terão, segundo a acusação, conspirado contra a lei e contra o interesse público. Ou seja, um Lava Jato, que só parece mais pequeno, não porque Portugal seja pequeno, mas porque o regime continua a esforçar-se por reduzir tudo a um fait-divers, como se tudo, no fundo, não fosse mais do que um daqueles escândalos privados com que o jet-set dá cor à imprensa popular. Entretanto, os acusados, suspeitos e implicados insistem em manter-se no palco, enfrentando com desfaçatez e absurdo toda a evidência. Na plateia, os oligarcas guardam silêncio, incluindo os antigos justiceiros do BE e do PCP. Tal como não deram pelas cativações de Centeno, também não dão pelo que se vai sabendo do que terá sido, segundo a justiça e a imprensa, o império de Sócrates e de Salgado entre 2005 e 2011.
De facto, não é só coragem que falta. Falta também uma alternativa. Se tivessem de ser tiradas todas as consequências desta história, que aconteceria? Infelizmente, e ao contrário do que espera Ana Gomes, o PS, a política e o país não parecem capazes de regeneração. É por isso que somos governados, não apenas pelo PS, mas exactamente pelas mesmas pessoas que estiveram no governo de José Sócrates. A sociedade portuguesa gera rotação no poder quando o dinheiro acaba, como vimos em 2002 ou em 2011. Mas já não gera alternativas, como constatámos em 2015, com o regresso dos colegas de Sócrates, e agora, com a liquidação do PSD por Rui Rio. A divergência económica em relação à Europa, o endividamento e o envelhecimento da população tiraram ânimo e independência à sociedade portuguesa. Em Espanha, a revolta contra a corrupção fez nascer o Ciudadanos; em França, a invalidez dos velhos partidos gerou Macron. Aqui, há vozes isoladas, como Ana Gomes.
Mas se está calada, nem por isso a oligarquia está quieta. Move-se — para se defender. O grande desígnio nacional é agora o afastamento da procuradora-geral da república. Porque se na política só há uma Ana Gomes, quem sabe se na justiça também só há – ou só possa haver — uma Joana Marques Vidal? Talvez baste afastá-la para, utilizando a metáfora de Ana Gomes, a tartaruga poder continuar com a cabeça dentro da carapaça.