O Paulo faria 39 anos no mês que vem, era casado com a irmã da Sónia e irmão do comandante, que chegou no momento em que tudo acontecia. A Sónia era bombeira e enfermeira, tinha 36 anos e ia casar com Francisco, que estava no camião a que Sónia, Paulo e Susana não conseguiram chegar a tempo. Susana também tinha 36 e o companheiro a combater outro fogo, noutra frente. Lamento profundamente por Paulo, Sónia e Susana, e lamento tanto ou mais pelo comandante, pela esposa de Paulo e pelos filhos, por Francisco e pelo companheiro de Susana.
Em Portugal, habituámo-nos à desgraça dos fogos, a saber que a nossa floresta é um desastre que, em teoria, pode arder de Norte a Sul com um só fósforo. Aceitámos as acções climáticas e sabemos, perfeitamente, que os fogos não só continuarão a acontecer ao longo do tempo, como terão a tendência para aumentar. Mas não temos de nos conformar com o destino dos bombeiros.
Num país de tão fácil maledicência (talvez todos sejam), onde basta uma câmara de televisão para se começar a apontar culpas ao vizinho, à polícia, à câmara, à justiça, ao governo, uma coisa comove em todas as peças sobre incêndios: toda a gente compreende a impossibilidade da missão dos bombeiros – “eles não podem estar em todo o lado”, dizem, fatalmente, os populares, com o ar esgotado de quem deu tudo o que tinha para tentar salvar a sua habitação e a própria vida.
Porquê? Porque é que Portugal, um dos países mais regularmente castigados por incêndios em todo o mundo tem vindo a perder bombeiros quando as alterações climáticas nos garantem que eles serão cada vez mais necessários? E mais: porque é que insiste em entregar a defesa do seu território e das suas populações a corporações essencialmente constituídas por voluntários?
Todos admiramos a coragem e o altruísmo dos bombeiros. Todos lhes agradecemos, ano após ano, o sacrifício que fazem por nós; chamamos-lhes “heróis” e “soldados da paz”. Mas uma tragédia regularmente marcada no calendário e previsível não precisa de heróis; precisa de profissionais bem preparados, bem equipados, bem pagos e bem distribuídos pelo território. Precisa de menos admiração e perplexidade, e mais, muito mais, de uma reforma política de alto a baixo.
De acordo com o Eurostat, Portugal é, pasme-se, dos países europeus que menos investe no combate aos incêndios: 343,8 milhões de euros em 2022, isto é, 0,3% da despesa total do Estado, contra os 0,7 da Roménia, líder europeu, ou os 0,5% da média da União, que inclui países como a Dinamarca ou os Países Baixos, onde há tanto risco de incêndios florestais como de nos cair um OVNI na cabeça. Segundo números do mesmo ano fornecidos pela Protecção Civil à CNN, temos cerca de 30 mil bombeiros, dois terços dos quais voluntários. E embora estejamos melhor do que em 2021, o pior ano desde que há registo, olhando para a panorâmica geral, nas últimas duas décadas, aquela em que quase todos os meses se bate o recorde de mês homólogo mais quente de sempre, perdemos 10 mil bombeiros voluntários.
E o problema, diz o Tribunal de Contas e a própria Liga dos Bombeiros, não são sequer os números globais – é a sua distribuição. Completamente assente numa dinâmica de voluntariado (dos 468 associados da Liga, 435 são corporações de voluntários), o número de bombeiros em cada região é um mero reflexo da densidade populacional. Isto é, há mais bombeiros ou há mais pessoas, nas cidades, que é justamente onde eles menos são necessários quando falamos de incêndios. Oeiras tem sete corporações de bombeiros para 45 quilómetros quadrados; Castelo Branco tem uma para 1400 quilómetros quadrados.
Acrescem os desequilíbrios ao nível do equipamento. Onde houver mais dinheiro e mais donativos, há mais meios; onde houver menos, há menos. E convivemos tranquilamente com isto há décadas, num país que se gaba do seu estado social.
Nunca nos passaria pela cabeça entregar os serviços de segurança do Estado ou a saúde a voluntários – porque é que o continuamos a fazer com a proteção civil? É verdade que já estivemos muito pior – em 2013, só 13% dos bombeiros eram profissionais – mas porque é que continuamos a assistir, anualmente, ao sacrifício dos “heróis” e a bater-lhes palmas e, depois, nos conformamos com a sua condição como se fosse uma fatalidade?
Um bombeiro sapador em início de carreira ganha 960,98 euros brutos, talvez uns 700 líquidos por mês. Um voluntário recebe 2,86 à hora. Leu bem: é a esse preço que está o herói. A Liga pediu um aumento para 3,20 este ano e 4,73 em 2026. Acrescem as 300 horas de formação à entrada, a obrigatoriedade dos piquetes semanais e todo o risco da profissão que seria óbvio sublinhar. A atractividade não mora aqui.
Não sei como o comandante de Vila Nova de Oliveirinha voltará a combater o fogo amanhã, nem Francisco, nem o companheiro de Susana. Sei que todos eles e os seus entes queridos agora desaparecidos eram bombeiros experientes e competentes e que a missão que escolheram implica sempre risco de vida. Mas algo está errado quando uma só família pode sofrer tantas perdas num só fogo. Algo está errado quando um combate de dimensão nacional tem de ser prestado por uma espécie de vocação ou destino familiar.
O Estado português tem companhias aéreas e matadouros, consultoras imobiliárias e estações de televisão, bancos e fábricas de explosivos – tem tanta coisa que poderia e deveria entregar à sociedade civil. Não esta. O combate aos incêndios tem de ser um serviço público bem organizado e prestado pelo Estado ou contratado a profissionais privados que o assegurem; não uma causa a que se oferecem em sacrifício famílias inteiras. Os nossos profundos sentimentos por todos os familiares e amigos do Paulo, da Sónia e da Susana, e por todos aqueles que já perderam entes queridos nos fogos de 2024.