Não sou um optimista irritante, pelo contrário. Mais depressa me definiria como um pessimista relutante. Contudo, num tempo em que quase só leio textos catastrofistas sobre este mundo que nos rodeia, apetece-me hoje chamar a atenção para três mulheres – porventura mesmo quatro mulheres – que podem fazer a diferença nos próximos tempos.
Eu compreendo que se vejam sobretudo nuvens negras no horizonte. O mundo democrático e liberal que temos vindo a construir nas últimas décadas parece estar a desmoronar-se. Ainda este fim de semana os irlandeses de Dublin estiveram quase, quase, mesmo quase a eleger para o Parlamento o chefe de um gang suspeito de múltiplos crimes. À hora a que escrevo não sei ainda se das eleições romenas não terá saído mais um governante pró-russo. Em França o governo recém-constituído pode não passar do Natal se o partido da senhora Le Pen chumbar o orçamento – o que acontecendo pode também criar uma crise europeia. Na Alemanha as eleições foram antecipadas depois de a coligação no poder se ter desentendido. Aqui ao lado, em Espanha, multiplicam-se os casos de corrupção em torno de Pedro Sánchez, mas este preferiu orquestrar mais um congresso do seu partido para ser celebrado ao modo de um demagogo sul-americano. E até no Reino Unido, onde o sistema eleitoral permitiu que o Partilho Trabalhista alcançasse uma esmagadora maioria na Câmara dos Comuns, o governo de Starmer vai de tropeção em tropeção. Isto para não falar das notícias muito preocupantes que continuam a chegar das diferentes frentes de batalha na Ucrânia. Do resto do mundo nem falo, está perigoso, mesmo perigoso.
Onde descubro então eu alguma luz no meio de tanta escuridão? Por estranho que pareça em mudanças que estão a acontecer, ou podem vir a acontecer – ainda é cedo para um diagnóstico – na forma como a União Europeia é dirigida. E não, não estou a referir-me a António Costa, estou a falar de Ursula von der Leyen, Kaja Kallas e Giorgia Meloni. Todas elas têm qualidades que as distinguem dos seus predecessores e que convém não menorizar.
Mas vamos por partes, começando por Ursula von der Leyen. Muitos dirão que foi uma presidente acidental, e de certa forma foi, pois ninguém previa que ascendesse a esse posto em 2019, outros acrescentarão que tem uma enorme tendência para centralizar o poder. Tudo isso é verdade, mas neste momento o que me interessa é que parece ter sido dos poucos líderes europeus a perceber a mensagem dos eleitores nas recentes eleições europeias: não é possível continuar a governar a Europa como se tudo tivesse ficado igual quando ocorreu uma viragem clara à direita e em direcção a menos federalismo, não é possível continuar a achar que tudo na Europa se resolve dentro do “bloco central” formado pelos cristãos-democratas, socialistas e liberais. Foi ainda assim que ainda se fez entre chefes de Estado e de Governo no conselho europeu onde Giorgia Meloni votou contra Von der Leyen, mas já não foi assim que se fez na escolha dos pelouros na Comissão, com uma importante vice-presidência a ser entregue a um italiano, como Meloni queria. Ursula von der Leyen tem também tido os instintos certos no que respeita ao apoio à Ucrânia e na forma como se refere ao actual conflito em Israel.
Na história recente da União Europeia só três presidentes cumpriram dois mandatos: Jacques Dellors, Durão Barroso e Von der Leyen. Não é dizer pouco da senhora que vinha de lado nenhum.
Para além disso ela terá a ser lado Kaja Kallas, ex-primeira-ministra da Estónia e agora Alta Representante da União para as Relações Externas, um lugar que nos últimos anos tem sido miseravelmente protagonizado por figuras sem peso político (caso da britânica – e baronesa – Catherine Ashton e da italiana Federica Mogherini) ou claramente fora de prazo, como o espanhol Josep Borrell, alguém que nunca perdia uma oportunidade para se pronunciar contra Israel.
Kallas pode ser diferente, sobretudo se pensarmos que, como primeira-ministra, foi a mais ardorosa defensora da Ucrânia e que o seu país, a Estónia, é aquele que, per-capita, mais ajuda enviou para Kiev, o que até lhe valeu o epíteto de “Dama de Ferro da Europa”. A história da sua família – a sua mãe passou os primeiros dez anos de vida no goulag, juntamente com a sua avó –, a sua oposição de sempre ao Norte Stream 2, tudo isso são indicadores de que percebe bem o tipo de regime que vigora em Moscovo. Acresce ainda que pertence ao grupo europeu dos liberais, ao contrário de todos os seus antecessores, que eram socialistas.
E assim chegamos à terceira mulher por quem pode passar muito do futuro da Europa: a primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni.
Numa Europa onde quase todos os países vivem períodos de convulsão interna, Meloni tem conseguido o que costuma ser impossível em Itália – um período de estabilidade e até de previsibilidade. Apesar da forma quase obsessiva como é sempre rotulada como “a líder da extrema-direita”, a verdade é que não só se apresenta como sendo de centro-direita, como as suas políticas na frente externa se têm revelado sólidas e firmemente ao lado da Ucrânia. A nível interno tem conseguido assegurar estabilidade e introduzido algumas reformas, algumas delas assumidamente conservadoras, outras tão pragmáticas que têm levado muitos líderes europeus a procurar aprender com a sua experiência – refiro-me à forma como está a tentar tratar da separação entre refugiados e migrantes económicos, fazendo essa triagem num campo que a Itália construiu na Albânia, por acordo com o governo de Tirana.
Mas porventura aquilo que mais distinguirá Meloni é a forma como, sem deixar de governar com pragmatismo, é uma política que assume as suas ideias e não se esconde atrás de vacuidades mais ou menos bem-quistas pelo eleitorado (ou pelas elites instaladas, que a odeiam). Para perceber isso recomendo a leitura da sua autobiografia, Io sono Giorgia – Le mie radici le mie idee, um livro de 2021 que decidiu escrever depois da imensa repercussão da forma como se apresentou num comício da campanha de 2019: “Eu sou Giórgia. Sou mulher, sou mãe, sou italiana, sou cristã. Ninguém me vai tirar isso.” Aqui ficam algumas passagens, que ajudam a perceber quem ela é.
Sobre ter recusado a viatura oficial na sua passagem por um governo de Berlusconi:
“Não se tratava apenas de ser consistente com a batalha que travamos durante anos contra o desperdício na política, mas acima de tudo uma forma de permanecer eu mesma, de não permitir que este sistema me controle e se torne essencial à minha sobrevivência.”
Sobre a sua formação política nas lutas estudantis, ainda nas décadas de 1980 e 1990:
“A educação para a coragem foi um aspecto importante do nosso crescimento, como ativistas e como indivíduos. Uma pessoa que foi educada na coragem será mais difícil de corromper quando se encontrar num cargo público ou numa posição de poder, porque já se deparou com a escolha entre o conforto pessoal, por um lado, e os seus princípios de outro lugar.”
Sobre a sua religião e a sua relação com Deus:
“Graças a Ele acredito que a vida não deve ser encarada olhando para frente, mas olhando para cima. O que importa não é até onde conseguimos avançar, mas até onde conseguimos subir, para nos aproximarmos da nossa perfeição.”
Sobre a Europa e sobre como o federalismo seria um grande erro:
“A soberania democrática reside sobretudo nos Estados nacionais governados por governos e por parlamentos eleitos diretamente pelos cidadãos, Mas se deixarmos a iniciativa legislativa a burocratas europeus que ninguém elegeu acabamos por prejudicar a democracia.”
Ainda sobre a Europa e os seus valores:
“Uma Europa que os nossos irmãos mais velhos imaginaram forte e autónoma (…), capaz de unir os seus povos não com parâmetros abstratos ou com uma moeda, mas com a força da sua antiga civilização.”
Sobre a forma como escolhe as suas equipas:
“A inteligência das pessoas, sobretudo em papéis de poder, reflecte-se nas escolhas daqueles que as rodeiam. Sempre preferi rodear-me de pessoas que me dizem a verdade, mesmo quando a verdade dói.”
Podia continuar, mas julgo que estas citações ajudam a perceber o essencial: Giórgia Meloni é uma política com referências claras e que sabe o que quer. Isso mesmo se verificou na forma como, no Parlamento Europeu, o seu grupo, o ECR (conservadores e reformistas) preferiu não se fundir com o grupo que estava a ser promovido por Victor Órban (chamado “Os Patriotas”), uma fusão que faria deste bloco o segundo maior do hemiciclo, passando à frente dos socialistas. Preferiu separar águas e essa estratégia está a funcionar, pois já conseguiu quebrar por mais de uma vez o governo conjunto do europarlamente pelo velho bloco central, obrigando o PPE, e Ursula von der Leyen, a olharem um pouco mais para a direita apesar dos protestos de socialistas e liberais. Ou seja, criou condições para que em Bruxelas não se ignore o que foi a vontade expressa dos eleitores europeus através da lógica das “linhas vermelhas”.
Os três mosqueteiros afinal eram quatro, e por isso tenho de acrescentar uma americana a este trio: Susie Wiles. Talvez o nome não diga (ainda) nada a boa parte dos leitores, mas será a chefe de gabinete de Donald Trump na Casa Branca, um lugar que já vi ser equiparado ao de primeiro-ministro numa democracia presidencialista, como a americana. Trata-se de alguém que trabalhou sempre na sombra, organizou campanhas políticas e apoiou executivos locais e regionais, trata-se sobretudo de alguém que conseguiu pôr ordem na campanha de Trump, com o sucesso que se viu sobretudo se pensarmos que ele teve muito menos dinheiro para gastar do que Kamala Harris. Muito temida mas pouco conhecida, primeira mulher a ocupar aquele posto na Casa Branca, todos lhe reconhecem uma imensa capacidade de trabalho e de inspirar respeito, dizendo-se que não terão sido poucas as vezes que refreou o presidente eleito.
Na Europa não teremos sucesso se não continuarmos a trabalhar com os Estados Unidos, o que implica trabalhar com a administração Trump, sendo que de todos os nomes que foi indicando (e alguns felizmente desindicando), Susie Wiles é o que me parece mais sólido e mais capaz de influenciar o novo presidente. Será preciso aprender a trabalhar com ela, pois não creio que baste existir uma boa relação entre Elon Musk e Giórgia Meloni para existirem bons canais de comunicação entre os dois lados do Atlântico.
É que, lamento dizê-lo, a Europa não vai reinventar-se de um dia para o outro, como alguns desejam e até prognosticam apenas porque Trump estará os próximos quatro anos na Casa Branca. Tanto assim é que basta ver como, na Europa, todos já perceberam que a haver uma solução rápida, mesmo que não a ideal, para a Ucrânia, ela não passará por Bruxelas (onde estão as sedes da União Europeia mas também da NATO), mas de novo por Washington.
Nos últimos dias li, por motivos diferentes, duas autobiografias de duas mulheres que dirigiram os seus países: Golda Meier (Israel) e Angela Merkel (Alemanha) – a este último dediquei mesmo um contra-corrente na Rádio Observador. São duas histórias muito diferentes e dois livros reveladores do contraste entre alguém que sempre lutou e nunca escondeu as suas ideias, e uma dirigente que nem ao recapitular a sua vida consegue ser diferente da gestão eficiente mas sem grande visão que marcou o seu mandato. Em 1973 o governo de Golda Meier salvou Israel no seu momento de maior crise, mesmo cometendo erros, em 2024 estamos numa Europa aterrorizada com um declínio da Alemanha que Merkel nem sequer parece admitir.
Gostava de acreditar que as três mulheres europeias que aqui evoquei tivessem todas a coragem (e o espírito de sacrifício) de Golda Meier e que a quarta nesta lista, a americana, o pragmatismo eficiente de Merkel. Não sei se não é pedir muito, mas pedir não custa.
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