Quando eu tinha 14 anos, correu mundo a célebre frase “Je suis Charlie”. Tornou-se viral, todos queriam ser Charlie, todos eram Charlie. Quase uma década depois, ainda queremos todos ser e fazer montes de coisas. As hashtags virais vieram para ficar, já tivemos #metoo, e mais recentemente #standwithukraine ou #freepalestine.

Muitas vezes tento refletir sobre os conflitos entre Israel e a Palestina, e entre a Rússia e a Ucrânia. É preciso uma certa humildade para abordar temas tão complexos historicamente, geopoliticamente, economicamente, etc. Não sou historiadora nem política, não sou economista nem especialista em política internacional e, por isso, não almejo interpretar estas guerras como se fosse alguém que não sou, mas espanta-me a facilidade com que, hoje em dia, se interpreta tudo tão facilmente. Espanta-me a facilidade com que se escolhem lados e esta necessidade quase primária de escolher a equipa pela qual torcemos. Se não tivermos uma hashtag, afinal quem somos nós? Temos de saber a nossa hashtag, se escrevemos #freepalestine, se escrevemos #standwithukraine. Não podemos simplesmente dar-nos ao luxo de não torcer por ninguém, o que seria. Temos de torcer pela nossa equipa e linchar a outra, até à humilhação sem retorno da equipa contrária. Não nos tivesse já a História ensinado que a humilhação e a renegação completa da equipa contrária não colhem bons frutos.

Para mim, nem tudo é tão claro, e tranquiliza-me que não seja, porque já alguém dizia que entre o preto e o branco há muitos tons de cinzento. Espanta-me a facilidade com que se critica o reconhecimento da Palestina pela Espanha, pela Noruega e pela Irlanda. É uma tentativa de chegar à paz. Se não é boa o suficiente? Talvez não seja, mas este também não é um conflito de soluções fáceis. Um dia, a paz provavelmente terá de passar pelo reconhecimento dos dois Estados e, tal como a Palestina não é só o Hamas, Israel também não é um poço de virtudes. Espanta-me ouvir todos os dias nos noticiários “mais armamento para a Ucrânia”. Mas é preciso mais? Podia-se ouvir todos os dias nos noticiários “mais uma mesa de negociações”, “mais uma tarde de negociações”, mas é sempre “mais armamento”. O que é o armamento, no fundo? É dinheiro, é poder? E mesmo o armamento, que os EUA não se fartam de oferecer, será um armamento hipócrita? E se agora rebentassem com Moscovo, ou com São Petersburgo? Todos sabemos que não pode ser, porque aí, rebentava a III Guerra Mundial. Talvez mais armamento seja a única forma de, um dia, se chegar a um acordo fértil, mas não haveria outras estratégias?

A Rússia é uma falsa democracia e invadiu um país soberano, é um país onde os oligarcas tomam conta de tudo à vista de todos, mas os EUA são uma democracia com muitos defeitos e querem mandar no mundo inteiro. Por lá, também há oligarcas que tomam conta de tudo, apenas não o fazem tanto à vista de todos. A minha geração, nascida na viragem do século, sempre ouviu maravilhas dos EUA. Nos manuais de História, não se fala da invasão ao Iraque, não se fala dos apoios a golpes de Estado nos países da América Latina, não se fala do ódio vincado que os norte americanos tinham aos japoneses. E da bomba atómica só se fala como tendo sido a única saída possível para a guerra, no fundo, fala-se da bomba atómica como se tivesse sido um “milagre”. Nunca saberemos o que teria acontecido se outro país tivesse conseguido criar a bomba atómica primeiro, mas sempre saberemos quem a criou primeiro e quem teve a ousadia de a usar. O documentário A História não contada dos EUA, de Oliver Stone, apresenta uma perspectiva fresca e diferente, segundo a qual a bomba atómica foi mais uma demonstração de força e de poder dos EUA para a URSS do que uma investida necessária para travar o Japão. Em julho de 1945, um grupo de 150 cientistas, liderado por Léo Szilárd, tentou enviar uma petição a Harry Truman, na tentativa de o dissuadir de utilizar a bomba atómica (evidentemente, sem sucesso). Segundo o documentário, no seu diário de Potsdamn, Truman escreveu “nós descobrimos a bomba mais terrível na História do mundo, pode ser a destruição pelo fogo profetizada na Era do Vale do Eufrates, depois de Noé e da sua fabulosa Arca”. Os generais Douglas MacArthur, Dwight Eisenhower e Henry Arnold e os almirantes William Leahy, Earnest King, e Chester Nimitiz declararam que a bomba era “moralmente repreensível e militarmente desnecessária”. O general Dwight Eisenhower declarou ainda “(…) eu era contra por dois motivos; primeiro, os japoneses estavam prontos para a rendição e não era necessário atingi-los com aquela coisa horrível, e segundo, odeio ver o nosso país ser o primeiro a usar esta arma terrível”. Este pequeno aparte serve apenas para refletir que, de facto, há muitas ocasiões em que a História é escrita pelos vencedores. A História que se ensina no Ocidente foi escrita pelo Ocidente, para o enaltecimento do Ocidente e para o silenciamento de tudo o que não seja o seu enaltecimento.

Há dias assisti a um vídeo do bombardeamento num campo de refugiados em Rafah e ficou-me na memória a imagem de uma criança dos seus 7, 8 anos, deitada numa maca, a gritar num desespero que muitos de nós só viram em filmes. Para quem viu o Padrinho III, o sofrimento dos lábios abertos daquela criança parecia assemelhar-se ao grito final de Michael Corleone quando vê a filha cair morta aos seus pés. A diferença é que o grito de Al Pacino é encenado. Espanta-me que depois de tantas mortes e de dores como esta ainda haja quem meça culpas, ainda haja quem consiga odiar um lado. Em que é que nos tornámos para continuarmos a puxar neste jogo infinito da corda? Será assim tão impensável defender duas causas opostas se o fim último é o mesmo: a paz? Será que ainda é possível apoiar a Palestina sem deixar de apoiar também Israel, será que ainda é possível apoiar a Ucrânia sem odiar a Rússia? Os povos não são as pessoas que os governam. Nos EUA e um pouco por toda a Europa, houve uma geração que cresceu com a crença de que os russos eram o inimigo. A minha geração vai crescer com a mesma crença? Vamos odiar a Rússia, os russos e a sua história e cultura?

Será a guerra inata e profundamente humana? Será o confronto uma fonte insaciável de entusiasmo, será o poder um estímulo sem o qual não podemos viver, será a conquista de território, de dinheiro, de poder, de religião um vício sem cura? Será impossível ser uma pessoa do século XXI se não agarrarmos, com unhas e dentes, um lado, uma causa? Será impensável deixar espaços para os cinzentos no meio do preto e do branco? E seria assim tão trágico abandonar o radicalismo de que há um lado que está completamente certo quando, inevitavelmente, a História já provou que é tudo mais complexo do que isso?

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