Sou padre há 33 anos. Desde que o sou, nunca ocultei esta minha condição, que não exibo por orgulho, mas por uma razão de serviço: não me ordenei para brilhar, mas para servir e, como a minha missão é universal, porque estou à disposição de todos os crentes e não crentes, não a poderia cumprir se não manifestasse, também pelo traje, a minha disponibilidade. É verdade que não é o hábito que faz o monge, mas, nestes tempos em que sobre todos os padres recai uma criminosa suspeição, seria de pouca coragem ocultar a identidade sacerdotal.

Está na moda questionar o celibato, à conta dos casos de pedofilia ou abusos de menores realizados por clérigos. Não faltam até improvisados teólogos que defendem o celibato opcional, como se todos os padres não tivessem antes, liberrimamente, optado por esse estado, como aliás muitos outros cristãos que, sem qualquer pretensão ao sacerdócio, livremente escolheram esse estilo de vida apostólica, que tem em Jesus Cristo o seu fundamento e razão de ser. Não é só o caso dos religiosos – também seria de propor o celibato opcional para os franciscanos, dominicanos, jesuítas, etc.?! – mas também de muitos leigos, que vivem e trabalham no meio do mundo e que se sentem liberrimamente vocacionados para seguir o Mestre no celibato, na pobreza voluntária e na obediência, sem votos de castidade, nem de pobreza, nem de obediência, porque não são os votos que fazem as virtudes, mas o amor.

Sei do que falo porque, durante mais de dez anos, fui um desses leigos, enquanto estudante universitário e depois jovem profissional. Apaixonei-me pelo ideal de fazer divinos todos os caminhos da terra, através do trabalho, servindo a todos e dando, com alegria e simplicidade, testemunho da minha fé. Nunca me julguei selecto ou escolhido – São Paulo disse que Deus chama os que nada são, para confundir os que são alguma coisa (1Cor 1, 28) – embora nunca tenha duvidado da minha vocação cristã, nem do seu carácter sobrenatural. A minha história, como tantas outras, não é uma carreira, nem um sacrifício; não é uma promoção, nem uma fuga: é uma história de amor. Sim, eu sou uma pessoa apaixonada por Deus e pelas suas obras, apaixonado pelo mundo e por todas as pessoas e coisas boas.

Para além da relação, aliás esporádica, com um tio padre – tanto ele como eu, com meus pais e irmãos, vivemos vários anos em diferentes países – foi como aluno de um colégio dominicano que comecei a lidar mais assiduamente com religiosos. Recordo, com saudade e agradecimento, esses anos em que frequentei o Colégio Clenardo, em Lisboa, onde aprendi as primeiras letras e os rudimentos da religião cristã. O Frei Gonçalo foi o meu primeiro professor primário, que nunca esqueci. Também recordo o Padre Alberto, que foi director do colégio, o Padre Domingos, professor de matemática, que revi muitos anos depois, no Ramalhão, e tantos outros de quem só conservo gratas recordações, aliás como, tanto quanto sei, todos os meus condiscípulos.

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Para evitar a universidade estatal, então mergulhada no marxismo-leninismo do PREC, fui para o estrangeiro fazer os meus estudos universitários. Vivi, por esse motivo, numa residência de estudantes que, sendo laical, era de orientação cristã e, por este motivo, tinha um capelão, por sinal excelente: muito novo e alegre, desportista e sempre pronto para nos ajudar.

Terminada a licenciatura, fui para Roma, onde vivi três anos e fiz uma pós-graduação em filosofia, ao mesmo tempo que iniciei a minha formação filosófico-teológica, que só terminaria seis anos depois, com a ordenação sacerdotal. Foram anos extraordinários, graças ao histórico pontificado de São João Paulo II. No seminário internacional em que vivi, com cerca de cem alunos de todo o mundo, quase todos os formadores e professores eram padres, também eles de várias idades, temperamentos e nacionalidades. De todos recordo apenas exemplos de virtude: nunca nenhum me escandalizou por qualquer atitude menos coerente com a sua condição sacerdotal.

Regressado à pátria, tive ocasião de exercer estavelmente o ministério sacerdotal no âmbito do patriarcado de Lisboa, da arquidiocese de Braga, de cujo tribunal eclesiástico fui juiz, e das dioceses de Coimbra e do Porto. Durante vários anos fui quinzenalmente ao Algarve e, mensalmente, aos Açores, também em serviço pastoral. Participei regularmente em actividades com sacerdotes das dioceses de Viseu e de Viana do Castelo, tendo orientado recolecções e retiros espirituais para membros do clero diocesano. De todos os sacerdotes que conheci e que são, certamente, largas centenas, conservo as melhores memórias: sempre foi muito mais o que deles aprendi do que o que lhes pude dar.

É verdade que soube do caso de um sacerdote diocesano que foi acusado de abuso de menores, o qual aliás pediu o meu assessoramento canónico para o processo eclesiástico que, por esse motivo, lhe foi instaurado pelo então bispo titular dessa diocese. Embora não me tivesse sido possível prestar-lhe esse serviço, soube depois que se provou que a acusação era infundada e tudo não passara de uma infame calúnia que, por falta de fundamento, nem sequer era susceptível de denúncia às competentes autoridades civis, para investigação criminal.

Nem todos os meus condiscípulos no seminário foram ordenados padres, porque alguns desistiram; outros houve que, depois, abandonaram o ministério sacerdotal. Os padres que conheci tinham também muitos defeitos, como seres humanos que são, mas não conheci nenhum, absolutamente nenhum, que tenha sido pedófilo, ou tenha abusado de menores. Nem um sequer.

Mas é claro que existiram, e talvez existam ainda, padres pedófilos, porque a Igreja, que é santa no seu fundador, na sua origem, no seu fim e nos seus meios, é composta por pecadores, como ainda recentemente recordou o Papa Francisco. Sempre houve, há e haverá leigos pecadores; sempre houve, há e haverá religiosos pecadores, sempre houve, há e haverá padres pecadores; sempre houve, há e haverá bispos pecadores, e até cardeais e papas. Mas seria um terrível erro e uma gravíssima injustiça tomar por regra a excepção: é verdade que o traidor foi Judas Iscariotes, um dos doze, mas esse doloroso facto não permite supor que os apóstolos eram todos traidores, até porque os onze restantes foram santos e mártires.

Ao longo da minha vida, que já vai entrada em anos, conheci muitas dezenas, centenas até, de padres de todos os tipos e condições: novos e velhos, seculares e religiosos, portugueses e estrangeiros. De todos, sem excepção, guardo boas lembranças e, mesmo que não possa assegurar a sua santidade, posso jurar, solenemente, pondo a Deus como testemunha da verdade desta minha afirmação, que nunca fui vítima de qualquer abuso por nenhum padre, como também não conheço, nem nunca conheci, que eu saiba, nenhum padre que tivesse praticado qualquer crime de pedofilia, ou de abuso de menores.

Talvez a Igreja católica precisasse de um exercício de catarse colectiva, como o agora realizado em Roma, muito embora nada se dissesse de novo, nem se tivesse descoberto nenhuma solução milagrosa. A resposta passa, invariavelmente, pela penitência e pela oração, pela prevenção e pela proximidade e acompanhamento de padres e leigos e, nos casos em que seja procedente, pela suspensão ou demissão do estado clerical. Na pastoral e no direito canónico já existem todos os meios necessários para a erradicação da pedofilia e do abuso de menores na Igreja católica: não falte, aos pastores, a coragem para a eles recorrerem sempre que seja necessário.

É provável que uma atitude pastoral aparentemente indulgente para com certos comportamentos contrários à doutrina cristã tenha proporcionado um certo relaxamento moral dos católicos em geral, que também terá afectado a disciplina do clero. Sem cair nos rigorismos de antanho, nem nos autoritarismos inquisitoriais, é preciso recordar que a condição cristã e, mais ainda, a sacerdotal, pressupõe o compromisso da santidade, na renúncia ao mal e na vivência de todas as virtudes.

Esse foi, decerto, o grande legado de São João Paulo II, que promoveu às honras dos altares centenas de mulheres e homens, muitos do nosso tempo, como Edith Stein, o Padre Pio e Teresa de Calcutá, que foram heroicos na prática da caridade. Mais ainda: o próprio Karol Wojtyla foi um exemplo vivo de santidade sacerdotal.

Esta é a Igreja de que o mundo precisa: a Igreja dos apóstolos santos, a Igreja dos santos mártires, a Igreja dos santos confessores, a Igreja das virgens santas, a Igreja dos santos fundadores, a Igreja das religiosas e dos religiosos santos; a Igreja dos missionários santos; a Igreja dos santos pastores; a Igreja dos casais santos; a Igreja dos santos jovens. Esta é a Igreja de que o mundo não é digno (cf. Heb 11, 38) e que, não obstante a minha condição de pecador, é a minha Igreja.