Sete mil milhões de outros. Toda a humanidade, para já. Sete mil milhões de pessoas que não ignoram o valor que têm os laços entre irmãos. Uns, porque têm os seus próprios irmãos; outros porque conhecem a força dos laços que unem ou uniam os seus pais aos seus tios — ou os seus familiares, amigos e conhecidos aos irmãos deles; outros ainda por serem filhos únicos e sentirem que foram privados dessa experiência fundante, estruturante.
Penso que não existe uma única pessoa à face da terra que não esteja consciente da importância de ser irmão, ou de ter irmãos. Sabemos que os laços de sangue tornam tudo mais intenso, mas também sabemos que esta intensidade tanto pode ser vivida na paz como na guerra. As rivalidades e a competição entre irmãos são tão lendárias como as suas cumplicidades e alianças. A relação raramente evolui em linha reta e poucos irmãos conseguem falar desapaixonadamente sobre aquilo que os divide. Já o amor que os une, e as memórias que um irmão deixa tatuadas no coração de outro irmão, não precisam de ser traduzidas por palavras porque se sentem e se expressam nos olhares e nos gestos.
Todas as fratrias estão marcadas por uma relação anterior à sua própria existência, pois os pais (ou quem os substitui) determinam, e muito, a qualidade dos laços que se estabelecem entre irmãos. A maneira como uma mãe e um pai tratam cada filho, a forma como lidam com a diversidade de personalidades, a atitude mais ou menos imparcial com que os acolhem, o modo mais ou menos justo com que os julgam deixam marcas indeléveis entre irmãos.
A esmagadora maioria de mães e pais têm uma inclinação natural para comparar traços de carácter entre filhos e, se não tiverem consciência desta inclinação – e, mais importante ainda, se não resistirem à tentação de os comparar! — podem chegar a comprometer o amor entre eles para toda a vida. Todos os pais que comparam talentos e performances dos filhos ou pior, que não escondem as suas preferências, deixam neles uma marca amarga. Nos que saem a perder nesta comparação, percebe-se facilmente a amargura, mas até os que saem ‘por cima’ podem ficar com cicatrizes uma vez que, mais cedo ou mais tarde, vão ser julgados pelos irmãos e dados como culpados de muitas das suas frustrações. Mesmo que não tenham culpa absolutamente nenhuma das mágoas dos irmãos, o facto de eles viverem ressentidos pelas comparações dos pais, fá-los-ão sentir-se culpados.
Nesta semana tão cheia e variada, em que termina o mês de Maio e a 31 se celebra o Dia dos Irmãos, a importância das fratrias corre o risco de passar despercebida, dada a ressaca das eleições europeias e o tema ainda aceso nos debates acerca dos resultados, das causas dos extremismos e das razões da elevada abstenção. Se somarmos a esta realidade política a chegada de 4 Prémios Nobel da Paz a Portugal, entre vários presidentes e ex-presidentes da República de diversos países, para as Conferências do Estoril, os laços entre irmãos ficam relegados para um plano incrivelmente distante. É pena, porque os irmãos fazem toda a diferença na vida de quem os tem e, também por isso, merecem ser celebrados.
Quem tem a felicidade de ter irmãos, de sangue ou adotados e, acima de tudo, de os ter ainda vivos sabe que é, porventura, a relação mais longa da sua existência. Pela ordem natural das coisas, os pais morrem primeiro e os irmãos ficam connosco e acompanham-nos pela vida fora. Custa perder os pais, mas é previsível que partam antes dos filhos e isso ajuda a superar a perda. Com os irmãos já não acontece o mesmo. Perder um irmão precocemente abre uma ferida tão profunda que dificilmente chega a cicatrizar. Nas fratrias há sempre irmãos mais angustiados com a possibilidade de ficarem sem um dos seus e é curioso como também isso ajuda a calibrar as relações. A partir de uma certa idade muitos se interrogam quem partirá primeiro, e ainda que este pensamento pareça mórbido, na verdade ajuda a esbater diferenças e a criar mais patamares de entendimento.
Cada família é uma nação e não existem duas relações iguais entre irmãos. Nem sequer entre aqueles que ainda vivem debaixo do mesmo teto. É fascinante ver como, numa fratria, cada irmão tem um comportamento próprio e uma atitude única para com cada um dos seus irmãos. Também é fabuloso constatar que nada é permanente entre uns e outros. Aquilo que hoje causa entendimentos e cumplicidades entre este e aquele, amanhã pode gerar desentendimentos entre os mesmos. As personalidades são tão complexas, os dilemas e os estímulos nas famílias tão variados, que as relações tanto se tecem e fortalecem no rancor, como no amor.
Todos os irmãos vão aprendendo por experiência que não há que ter medo de se desentenderem. O único medo que devem ter é não saberem voltar a entender-se. Isso sim, é dramático e gera afastamentos irreversíveis, com danos irreparáveis. As fratrias que ficam para sempre divididas ou partidas provocam dores inconcebíveis. Dores morais e emocionais que podem ser tão excruciantes e destrutivas como as dores provocadas por graves sofrimentos físicos.
Na primeira infância e até ao fim da adolescência, todos os irmãos passam por fases em que disputam a atenção dos pais, em que consciente ou inconscientemente procuram receber todos os louros e os maiores elogios. Nestas fases brigam muito e podem tornar-se intolerantes e agressivos com os irmãos, mas curiosamente também facilmente se mostram inseparáveis e os defendem com garras.
Lembro-me bem como foi comigo. Sou a segunda dos 5 filhos que os meus pais geraram (uma delas, logo a seguir a mim, morreu no parto) e o meu irmão mais velho passou pela fase girls stink em que fazia grupinho aparte apenas com os seus amigos rapazes, fazendo tudo o que estava ao seu alcance para me mostrar que não me dava importância nenhuma. Sinceramente cheguei a pensar que me detestava, mas paradoxalmente dei-me conta de que afinal não vivia sem mim porque a primeira pergunta que invariavelmente fazia, quando entrava em casa, era:
– A mana?
Curiosamente eu tinha o mesmo impulso e, mal chegava da escola, perguntava onde estava o meu irmão. Ou seja, no essencial estávamos sempre ligados. E assim continuamos décadas após décadas. Eu, ele e os nossos outros dois irmãos, numa fratria de 4 que ao longo da vida sempre se tem amado, respeitado, protegido e ajudado, ainda que com a quota de incompreensões e frustrações a que todos os irmãos têm direito.
Há cada vez mais famílias monoparentais e cada vez mais filhos únicos. É uma realidade que também conheço, embora o meu único filho felizmente tenha dois meios irmãos mais velhos, que interagem como verdadeiros irmãos que são.
Acontece a muitas pessoas sentirem-se muito sós por terem sido privadas desta relação entre irmãos e percebo a sensação, pois é um seguro de consolo contar com os irmãos, mesmo sabendo que em certas épocas é tanto o que os une, como o que os divide.
Por tudo isto e muito mais que fica por dizer, presto aqui o meu tributo a todos os irmãos, mas também àqueles que nunca os tiveram ou os perderam demasiado cedo. No dia 31 celebra-se o Dia dos Irmãos. Vale o que vale, mas vale certamente como oportunidade para cultivar o amor e reforçar gestos de reconhecimento, na certeza de que com mais ou menos desavenças, os nossos irmãos são únicos e irrepetíveis. Provavelmente, os melhores do mundo.