Pais e mães de todo o mundo sabem bem o que é perder noites à cabeceira de um filho porque está doente, porque não dorme com pesadelos ou por razões que lhes escapam. Custa viver em estado de exaustão, sempre a morrer de sono. Custa manter a performance e a lucidez, quando a única coisa que apetece é uma noite bem dormida, se possível muito comprida. Custa atravessar longos períodos em privação de sono, mas tudo passa e tudo fica justificado se os filhos melhoram e superam as suas crises.

O cúmulo de noites mal dormidas deixa sempre marcas, mas diria que não chegam a ser cicatrizes. Tal como para as mães as dores de parto parecem insuportáveis no momento em que as vivem e, logo a seguir (quase) as esquecem, também as noites passadas em branco por causa dos filhos deixam apenas a memória do facto. Aconteceu, foi duro, mas passou.

À medida que os filhos crescem e, insisto, se as doenças passam e os medos noturnos se desvanecem, podemos voltar a viver longos períodos sem grandes sobressaltos durante a noite. Até ao dia em que o sono volta a ser uma questão familiar porque a mãe ou o pai (ou os dois!) estão doentes ou a ficar tão velhinhos que precisam cada vez mais dos filhos à cabeceira. É nesta altura que os filhos, que também já foram pais, revivem cenas passadas, de um quotidiano inquietante marcado pela ansiedade e cheio de aflições sobre o que fazer e como agir. É então que voltamos a perder o sono.

Quem é apenas filho e nunca foi pai, ou mãe, não pode comparar níveis de desgaste, claro, mas também não precisa. Viver sem dormir é brutal e cansa qualquer um. Em certos dias e horas, desespera, mas por incrível que pareça, o maior desespero não nasce do sono escasso e intermitente. O pior é ver sofrer e ficar impotente perante o sofrimento, especialmente quando toca os que mais amamos. Os que nos deram a vida e dariam a vida por nós.

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Chamam geração sanduíche aos que ainda cuidam dos filhos, mas também já tratam dos pais. Embora não adore a metáfora, reconheço o estatuto. Vivo essa realidade há pelo menos uma década. Eu, os meus irmãos e tantos, tantos outros como nós, que continuam a ter os pais como prioridade na sua vida. Filhos que cuidam e protegem, que se preocupam com o bem-estar de quem os gerou e por eles se sacrificou, que acompanham às consultas e às urgências, que ficam sentados em salas de espera horas a fio, que levam e trazem o que é preciso, quando é preciso, que passeiam com os pais sem ser apenas ao domingo e nos dias de festa, enfim os filhos que velam pelo sono dos pais sabem bem a gratidão que sentem quando estão à sua cabeceira e conhecem por experiência própria o impacto da sua presença.

Permanecer próximo e disponível é um quebra-cabeças para a esmagadora maioria dos filhos desta geração sanduíche, pois os que trabalham desdobram-se em mil compromissos e prazos, enquanto os que estão desempregados vivem ainda mais essa ansiedade de não saber como providenciar, como prestar cuidados e gerir prioridades no auge da sua própria vulnerabilidade. Nada fácil, esta realidade. E, no entanto, aquilo que parece impossível torna-se muitas vezes possível com estratégias afinadas de gestão de tempo e de recursos. E, também, com ajudas que existem na vizinhança, mas nem todos conhecem.

Já escrevi algumas vezes sobre o ‘ageing in place’ em alturas em que foram feitos estudos, ou publicados resultados, sobre esta realidade tão exigente como desafiadora do envelhecimento. Volto ao tema por ser intemporal e nos interpelar sobre as melhores soluções para amparar pais e avós na velhice. Está mais que provado que envelhecer em casa ou na casa de familiares – se possível no perímetro do bairro ou na mesma cidade onde sempre viveram e onde teceram as suas redes sociais – é um fator de bem-estar, um ponto de estabilidade e até um potenciador da saúde física e mental.

Trazer os pais para casa nunca é fácil, sobretudo para eles, que têm que se adaptar a espaços, regras e rotinas que não são as deles, mas muito mais importante do que a perturbação que esta decisão provoca no interior das famílias, onde cada elemento é convocado a acolher e a aceitar a presença, bem como a participar na gestão das prioridades, é o equilíbrio que lhes devolve a eles, sobretudo quando estão conscientes da sua fragilidade crescente. Pode custar chegar a esta opção, mas uma vez tomada a difícil decisão, colhem-se frutos fabulosos. E também cansaços e frustrações, claro.

Todos fazemos sacrifícios, eles e nós, mas a paz que fica no nosso coração depois do dia em que partem é indizível. Também não há palavras para exprimir o impacto interior do testemunho mútuo de amor e entreajuda, nem é possível descrever a força que nasce em nós quando nos pomos ao serviço dos nossos. A sensação de missão cumprida, a certeza de trazermos em nós uma capacidade de superação permanente e a felicidade que sentimos por os termos tido connosco até ao fim são a nossa melhor recompensa. Isto, para não falar da alegria que sentimos por lhes termos dado de volta parte daquilo que recebemos deles, ou através deles.

Muitos pensarão que só os verdadeiramente privilegiados podem ter os pais ou avós em casa (ou muito próximo de suas casas), mas não é verdade. Não depende da situação financeira nem, tão pouco, das condições da casa. Entre ricos e pobres sempre houve e haverá casos exemplares e referências que podemos guardar. Tal como se encontram sempre soluções para acolher mais um filho que não se espera (ou, muitos anos mais tarde, quando voltam para casa dos pais, apesar de já terem idade para morarem sozinhos), também para os mais velhos é possível arranjar alternativas aos lares de terceira idade. Note-se que digo isto sem qualquer preconceito relativamente aos lares de idosos e, mais importante ainda, sem qualquer julgamento relativamente a quem opta por esta possibilidade. Existem lares extraordinários e há pessoas que só nestas instituições encontram os cuidados e a logística de que precisam para viver com saúde e bem-estar!

Não sou quem para julgar ou avaliar as vidas e as circunstâncias dos outros, apenas sei o que vivo e experimento por eu e os meus irmãos termos tomado a opção de manter os pais connosco. A quem porventura achar que posso estar a dourar a realidade, posso dizer que ter os pais em casa é muito parecido com ser outra vez pai e mãe de seres incrivelmente vulneráveis e dependentes do nosso colo, do nosso amor, da nossa compreensão, do nosso tempo e da nossa capacidade de satisfazer as suas necessidades elementares.

Posso garantir que se vivem algumas noites de sono intermitente e se passam muitas horas em consultas ou nos bancos de hospital, em sucessivas urgências. Tal como os pais fizeram connosco, nos primeiros tempos de vida, também nós fazemos por eles, nos últimos tempos das suas vidas, coisas que nunca pensámos. Não me vou deter na escatologia própria de certas doenças nem nos momentos esperados e inesperados das suas aflições, mas posso partilhar que dar banho a um pai ou uma mãe e poder, depois, deita-los numa cama quentinha e feita de lavado, também eles lavadinhos e perfumados, onde se voltam a sentir confortáveis e tranquilos, é o céu. Para eles e para nós.

Escrevi que voltei ao tema ‘ageing in place’ por ser intemporal e nos interpelar sobre as melhores soluções para amparar pais e avós na velhice, mas não disse toda a verdade. Também escrevo sobre filhos de cabeceira por ser essa a realidade que hoje me é dada viver com a minha mãe, num dia particularmente doloroso e erosivo para ela, em que não me posso afastar de casa nem quero deixar o seu quarto. Custa vê-la sofrer, é certo, mas ao mesmo tempo é extraordinariamente consolador podermos estar juntas nestes momentos de maior adversidade. Todos os pais que estiveram à cabeceira dos seus filhos sabem do que falo, assim como todos os filhos que estão à cabeceira dos pais, em casa, nos hospitais ou nos lares, também percebem o que digo.