Numa fase em que o sonho de Putin de reconstruir o Império Russo se está a desmoronar, face à resistência encontrada na Ucrânia e ao previsto alargamento a leste da NATO, talvez se imponha uma reflexão sobre a sua forma de governar. Um exercício do Poder que não andará longe da denominada tríade negra da liderança. Uma analogia com a trilogia negra que marcou o século XIV europeu. Em comum a cor negra decorrente do luto e da morte.
Nessa altura, a guerra, a peste e a fome dizimaram uma parte considerável da população europeia. Na conjuntura atual, o maquiavelismo, o narcisismo e a psicopatia ditam a lei na forma como Putin exerce o Poder e, consequentemente, na perspetiva segundo a qual encara o papel da Rússia tanto nas dimensões interna e regional como na arena global.
Séculos atrás, Maquiavel ensinou Lourenço de Médicis que o talento sem ocasião ou oportunidade de nada valia. Um conselho que Putin revisitou. Daí que, na ausência de oportunidade, ousasse criá-la. Melhor, criá-las porque a História já regista vários casos, sobretudo nos territórios que considera parte integrante do seu sonho imperial.
Primeiro, em 1999, na Chechénia, cuja capital Grozny foi arrasada, a pretexto de uma ação antiterrorista destinada a vingar a morte de três centenas de civis russos num atentado em Moscovo atribuído por Putin aos separatistas chechenos.
Depois, em 2008, na Geórgia, quando apoiou os separatistas da Abecázia e da Ossétia do Sul que desafiavam o Poder Central e a unidade do país.
Mais tarde, em 2014, na Crimeia, como retaliação ao derrube do então Presidente ucraniano Víktor Yanukóvytch, um aliado da Rússia, com a consequente anexação da península. Um ato pretensamente legitimado por um referendo que a comunidade internacional, salvo raras e pouco dignas exceções, não reconheceu. Uma luta contra a Ucrânia que não se quedou por aí, uma vez que Putin apoiou as forças separatistas de Donetsk e Lugansk, para mais tarde reconhecer a independência dessas repúblicas.
Uma saga que continua porque, em nome da necessidade de proceder à desnazificação da Ucrânia, Putin decidiu-se por uma ação militar preventiva no país. Um eufemismo quotidianamente desmentido pelas imagens de destruição que não deixam indiferente a consciência humana, pelo menos na parte ocidental do Globo.
Se à lista de exemplos elencados for acrescentada a intervenção russa na Síria em 2015, ou na questão entre a Arménia e o Azerbaijão em 2022, ou, ainda, no Cazaquistão já no decurso do presente ano, poucas dúvidas restam de que Putin não se limitou a ler Maquiavel. Seguiu o exemplo de Napoleão Bonaparte. Atreveu-se a criticar o mestre florentino, anotando as divergências e propondo novas estratégias.
Como a tríade negra da liderança passa pela identificação dos traços caraterísticos do maquiavelismo, do narcisismo e da psicopatia, embora a falta de preparação académica em Psicologia aconselhe a não tecer juízos de valor definitivos sobre a terceira dimensão, considero que não deixa de ser preocupante que a imagem e a postura política de Putin pareçam enquadrar-se nesse perfil.
Na realidade, no rosto de Putin não são visíveis os sulcos da idade e as rugas da vida. Apesar dos progressos da indústria dermatológica e da cirurgia plástica, talvez a explicação não passe apenas por aí e seja conveniente chamar à colação a sensação decorrente da circunstância do líder russo se sentir dono da verdade. Uma plenitude que não abre espaço para o arrependimento, pois a certeza liberta endorfinas e garante uma sensação de bem-estar, ainda que garantida à custa do mal-estar e do desconforto de milhões, a nível interno, regional e global.
É com esta modalidade de liderança que os vizinhos da Rússia, bem como todos aqueles que se reveem no Mundo Livre, se encontram confrontados. Uma circunstância que exige o recurso a uma contra estratégia que saiba dosear a firmeza com a plasticidade que as circunstâncias aconselham, mas sem hipotecar os princípios. Afinal, lidar com um plutopopulista cuja liderança assenta na tríade negra representa um desafio que tem tanto de urgente como de perigoso. A estratégia não pode passar pela diplomacia da canhoeira nem por pretensos cordões sanitários. A Diplomacia vai precisar de muita criatividade. A segurança, não apenas no leste da Europa, assim o exige.