Na fase de anarquia social e política que mediou entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro, Henry Kissinger, que considerava Portugal perdido para a órbita comunista, pretendeu usar o caso como uma espécie de vacina. Uma terapia para desaconselhar os países vizinhos do Sul, designadamente a Espanha, a optarem por soluções alinhadas com Moscovo. Felizmente, o embaixador dos EUA em Portugal, Frank Carlucci, recusou-se a fazer de Mário Soares o Kerensky português e o PCP não logrou os seus intentos.

Na conjuntura atual, devido à pandemia, Moscovo volta a ser notícia por causa de uma vacina. Só que, desta vez, a vacina não se destina a imunizar contra o modelo que tem como protagonista o populista Vladimir Putin. Pelo contrário, destina-se a imunizar as populações de muitos países onde os populistas estão no Poder. Uma forma de Moscovo aumentar a sua zona de influência, sobretudo na Europa e na América Latina, embora a vacina soviética também esteja a ser ministrada noutras regiões.

Uma revisitação da moribunda internacional que Moscovo liderou no tempo da guerra fria. Na atualidade, com o Mundo a encaminhar-se para um bipolarismo entre os EUA e a China, Moscovo faz questão de mostrar que recusa ser arredada das grandes decisões mundiais. Daí a estratégia de recorrer a uma espécie de populismo transnacional. Um populismo que, ao contrário do comunismo de outrora, não revela pruridos ideológicos. Dito de uma forma mais clara: Putin não se preocupa se os aliados se dizem de esquerda ou de direita. O que importa é que não coloquem em causa o seu populismo autocrata e embarquem como companheiros nesta missão.

Como nem o acaso acontece por acaso, a vacina foi batizada com o nome de Sputnik V, uma recuperação da designação ligada à odisseia soviética na luta pelo domínio do espaço. Afinal, a pandemia concedeu à Rússia a oportunidade para colocar em prática as palavras de Putin, segundo as quais as fronteiras de interesses russos eram mais amplas do que as fronteiras geográficas.

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É essa estratégia que explica que a Hungria de Orbán, apesar de integrar a União Europeia e de a comunidade ter em ação um plano concertado de vacinação, ter autorizado a vacina russa. Que o populismo de Orbán seja cultural ou identitário e conotado com a extrema-direita não aflige Putin. A exemplo, diga-se, do que se passa relativamente a Jair Bolsonaro e ao Brasil, outro dos países que acredita ver em Putin e na sua vacina não amanhãs, mas hojes, que cantam.

A lista de países liderados por populistas que apostam na Sputnik V não cessa de alargar. Uma lista onde a América Latina detém uma posição dianteira. Não é sem razão que os cientistas políticos consideram esta parte do continente americano como um laboratório privilegiado para o estudo do populismo. Que o digam a Venezuela de Maduro, a Argentina onde Alberto Fernández aposta na reedição do peronismo e do kirchenarismo e, por isso, deu o exemplo ao ser o primeiro a ser vacinado com a vacina vinda da mãe Rússia, a Bolívia onde Evo Morales tem mais peso que o Presidente Luis Arce, o Paraguai, o México…

Em Portugal, na conjuntura já referida, apregoava-se que a cantiga era uma arma. Felizmente, para os defensores do modelo ocidental de democracia, os cantores ditos de intervenção não lograram a sovietização do pensamento coletivo. Na Rússia, Putin percebeu que a vacina pode ter um papel semelhante àquele que, em tempos de guerra fria, espalhou a influência soviética pelo Mundo. Uma tarefa facilitada. Em tempos de pandemia, as populações aceitam a vacina como bênção. A gratidão, bem como a solidariedade populista, está garantida. Putin já se pode arrogar o direito de falar alto à União Europeia e à recém-empossada Administração dos Estados Unidos.

Afinal, nas mãos de um populista, a vacina é uma arma. Oxalá a eficácia terapêutica esteja ao nível do aproveitamento estratégico.