O caso passou-se no dia 27 de Junho de 1989 num encontro entre os secretários-gerais dos partido comunistas português e soviético, sendo relatado por Leonid Kravtchenko, então director da Rádio e Televisão da URSS, nas suas memórias: “O Canto do Cisne do Comité de Estado para Situações de Emergência” (Este comité foi constituído por comunistas ortodoxos para derrubar o Presidente Gorbatchov na URSS a 19 de Agosto de 1991).
O programa “Vremia”, que começava religiosamente às 21 horas, abria sempre com informações vindas do Bureau Político do Comité Central do Partido Comunista da União Soviética e, nesse dia, uma das notícias dizia respeito ao encontro, em Moscovo, entre o dirigente soviético e Álvaro Cunhal, secretário-geral do Partido Comunista Português.
Porém, nesse dia, às 20 horas e 50 minutos, Kravtchenko recebeu um telefonema urgente de Iegor Ligatchov, então o Nº 2 da hierarquia soviética, para que ele retirasse do comunicado do Bureau Político qualquer referência ao encontro com Cunhal.
“Nós enviámos-vos o texto do comunicado do Bureau Político, onde há uma parte relativa ao encontro com Cunhal. Ele acabou de ser enviado por fax para o programa “Vremia”. Peço-te, Leonid Petrovitch [Kravtchenko] que tires do comunicado as considerações sobre as conversações com Cunhal. Ele está categoricamente contra essas avaliações e ameaça convocar para amanhã uma conferência de imprensa escandalosa”.
Segundo Kravtchenko, “as conversações estavam a decorrer com grande dificuldade. Cunhal tinha acusado abertamente a nossa direcção do partido de deslizamento para o oportunismo”.
A julgar pelos documentos publicados dos arquivos soviéticos, nunca o dirigente comunista ousara falar assim com um líder soviético.
Porém, as divergências entre Gorbatchov e Cunhal teriam começado logo a seguir à eleição do primeiro para a chefia do PCUS, em 1985. Nomeadamente, eles divergiam no que dizia respeito à convocação de uma conferência internacional de partidos comunistas e operários da Europa Ocidental.
Na sua obra “Vida e reformas”, o dirigente soviético escreve: “Eu prestei atenção a isso já em 1985, quando do encontro com Álvaro Cunhal, secretário-geral do Partido Comunista Português. Ele queixou-se de que não era possível reunir os partidos comunistas da Europa Ocidental. Cada partido, então, provava afincadamente a sua independência. Por detrás disso estava o desejo não só de se livrarem da protecção imposta pelo PCUS, mas também de desmentir a tese de que os comunistas eram “agentes de Moscovo”. Tornava-se evidente que uma reunião de partidos comunistas do velho tipo, que aprovava documentos obrigatórios para todos, pertencia ao passado. E o aumento da variedade de condições da actividade dos partidos, que exigia uma diferenciação de posições, privou de perspectivas a elaboração daquilo a que se chamava uma “política comum””.
À medida que as reformas de Gorbatchov avançavam, as divergências dele com dirigentes comunistas ortodoxos aumentavam. A política de desanuviamento no campo externo e de liberalização do sistema comunista no plano interno irritava seriamente líderes comunistas como Álvaro Cunhal. Porém, pouco ou nada transparecia para o mundo externo. Por exemplo, embora, em 1989, a União Soviética vivesse a época da “glasnost” (transparência), este conceito ainda estava longe da liberdade de expressão e a direcção soviética também não queria deixar passar para fora a imagem das contradições existentes no movimento comunista internacional a propósito do rumo tomado pela URSS.
Depois da conversa entre Ligatchov e Kravtchenko, restavam apenas três minutos para o início do programa televisivo mais visto na União Soviética. Kravtchenko conseguiu telefonar para o redactor-chefe, que, por sua vez, teve de ir a correr para os estúdios que ficavam noutro andar. A 3 segundos das 21 horas, quando nos ecrãs surgia de detrás de um globo terrestre uma das estrelas vermelhas do Kremlin, ele apenas teve tempo de dizer ao apresentador que “no texto do Bureau Político nada lesse sobre o Cunhal”. Mas como as alterações dos textos eram gravemente castigadas, constituíam um crime político, o apresentador ainda teve tempo de perguntar: “Quem é o responsável?” e o redactor-chefe de responder: “É o Kravtchenko!”.
“Comecei a ver o programa aterrorizado. Notava-se nervosismo nos olhos de Suslov (apresentador), que normalmente era imperturbável. Quando começou a ler a notícia “No Bureau Político do CC do PCUS”, era notório que ele procurava com o olhar o apelido de Cunhal! Conseguiu! Ele não leu nada sobre Cunhal. Eu exultei de alegria”, recorda Kravtchenko.
Pouco tempo depois, Gorbatchov telefonou-lhe para agradecer: “Sabes, Leonid, estava a preparar-se um grande escândalo, vocês ajudaram-nos. Obrigado!”.
Mais tarde, segundo reconheceu Kravtchenko, viu-se que, além das frases sobre Cunhal, o pivot cortou mais duas com uma notícia de grande importância, mas não foi castigado por isso.
Um ano antes, em 1988, não obstante as graves divergências entre Cunhal e Gorbatchov, o primeiro aceitou das mãos do líder soviético, que dentro do PCP já era considerado um “traidor”, a Ordem de Lénine. Os comunistas portugueses só ousaram condenar publicamente a política do reformador soviético no dia 19 de Agosto de 1991, quando o Comité de Estado para Situações de Emergência o prendeu e tentou tomar, através da força, o poder na União Soviética.
Pelos vistos, Cunhal esperava que o resultado fosse o mesmo que em 1964, quando um golpe palaciano no Kremlin derrubou Nikita Khrutschov do cargo de secretário-geral do PCUS, mas enganou-se, pois milhares de pessoas saíram para as ruas de grandes cidades soviéticas como Moscovo, Leninegrado, Tallinn, Riga, etc. e travaram o restabelecimento da ditadura comunista.
A URSS deslizou para o seu fim.