O sínodo dos bispos sobre a família está a acabar, mas continua na ordem do dia. Muito se tem discutido sobre vários temas, chegando a levantar-se barricadas entre os defensores da sã doutrina e… os outros. Ao que parece, apesar de tentativas desesperadas de levantar falsas confusões que, supostamente, aconteceriam na aula sinodal, as barricadas estão cá fora.
Como expectável, o tema que tem revelado maior discordância entre os padres sinodais é o do acesso, ou não, dos divorciados recasados (civilmente) aos sacramentos. Sobre este assunto, muito se tem discutido. Os próprios bispos admitem não chegar a consensos e a última proposta foi a de se formar uma comissão para estudar esta matéria com o tempo e a serenidade que tal assunto exige. A ver vamos o que decide o papa Francisco.
Desiludam-se, portanto, os que têm todas as certezas absolutas e acusam prepotentemente de perversos e infiéis os que pensam de modo diferente. Serão perversos, desprovidos de inteligência, mal intencionados ou hereges todos os bispos que não logram chegar a acordo? A ligeireza com que alguns iluminados acusam os outros de infidelidade e heresia, é de uma ingenuidade espantosa!
Além do tema em si, a questão dos recasados revela-se importante porque traz à tona as diferentes perspectivas dos bispos e dos cristãos em geral e remete para uma discussão antiga. De facto, no Concílio Vaticano II (CVII), o debate entre aqueles que defendiam uma linguagem do tipo jurídico e os que reivindicavam uma linguagem do tipo personalista, foi aceso. Como podemos verificar, por exemplo, na Gaudium et Spes, especialmente no que se refere à família e ao matrimónio (nºs 47-52), a linguagem personalista impôs-se e o CVII ofereceu-nos uma das mais belas páginas dos documentos da Igreja de todos os tempos. É uma linguagem muito mais próxima da Escritura, das palavras de Jesus e, por isso, também da vida das pessoas.
A linguagem jurídica tem uma vantagem óbvia: permite falar com precisão, apresentando definições claras. O código de direito canónico (CDC) tem a virtude de afirmar a verdade de um modo cristalino. No entanto, as desvantagens não são de pouco importe. Tanto a montante como a jusante. Todos os canonistas concordarão que apresentar a doutrina católica não é uma empresa jurídica. Reduzir Jesus Cristo e o Seu Evangelho a um determinado número de cânones não é pretensão do CDC. Mas a jusante, o desajuste não é menor. Pretender que o direito canónico faça a ponte entre o Evangelho e a vida concreta das pessoas é, no mínimo, muito desapropriado. Haverá sempre situações vitais que escapam aos cânones, embora, por vezes, na mente de alguns, parece que o direito canónico é Palavra de Deus. Não é. Um código é isso mesmo: um código. Nem mais nem menos.
É interessante ler o que defendia o Professor Joseph Ratzinger, já nos anos 70 (Hacia una teología del matrimonio, Sel. Teología 33-36 (1970), 247): “É certo que as palavras de Jesus sobre o divórcio são o critério incondicional de todo o matrimónio cristão, mas não são lei no sentido estrito da palavra. Assim se entende que a Igreja Oriental, desde muito cedo, concedesse a possibilidade de divórcio ao cônjuge inocente em caso de adultério. Possibilidades semelhantes foram durante muito tempo reconhecidas pela Igreja latina.”
Apesar de supostos defensores da ortodoxia se escudarem com o perigo da alteração da sã doutrina, já se afirmou e reafirmou à exaustão que não está em jogo a alteração da doutrina. Apenas se questiona se é possível uma abordagem menos jurídica e mais pastoral, quer dizer, mais à maneira de Jesus. Ou “não lestes o que fez David quando ele e seus companheiros estavam com fome? Como entrou na casa de Deus e comeu os pães da proposição, que não lhe era permitido comer, nem aos que estavam com ele, mas apenas aos sacerdotes?” (Mt 12: 2-8).
Não está em causa a doutrina da indissolubilidade do matrimónio, que tem todo o sentido. Mas, como continua Ratzinger, “então, a pastoral deve deixar-se guiar mais pelo limite de toda a justiça e pela realidade do perdão; não deve desqualificar o homem que pecou neste campo, de uma forma unilateral por comparação com outras formas de pecado. Deve ter uma consciência mais clara do carácter particular que tem o jurídico dento da fé e a justificação na fé, e deve encontrar novos caminhos para manter aberta a comunidade de fé também a quem não pôde manter em toda a sua exigência o sinal da aliança.”
O direito canónico legisla a partir da doutrina da Igreja. Esta advém do Evangelho, que nos oferece as palavras e os gestos de Jesus Cristo. Por favor, não invertamos o sentido, sob pena de trocar o absoluto pelo relativo e o eterno pelo efémero.