Sempre achei António Costa relativamente inofensivo. Desde cedo colocou as suas qualidades ao serviço da obtenção de poder, mas como nunca mostrou qualquer ambição reformista, definição ideológica ou visão para o país, o mais provável é que não soubesse o que fazer quando este lhe caísse nos braços. Ambicioso e habilidoso, conquistou um poder imenso, mas limita-se a andar em círculos sem qualquer rumo ou objectivo. Como já disse noutras ocasiões, considero-o como alguém que não é de esquerda, direita, revolucionário, liberal ou conservador. Procura meramente eternizar-se no poder. Naturalmente, cada ano que o país está nas suas mãos representa um ano perdido, mas, uma vez que tem legitimidade democrática, não haverá muito a fazer.
Nos últimos anos tenho, no entanto, começado a rever a minha opinião sobre a sua inofensividade. Não tanto por eventualmente me poder ter enganado na caracterização que fiz do nosso Primeiro-Ministro, mas porque me parece que as suas acções abrem o caminho para personagens infinitamente mais perigosas. Gente igualmente sedenta de poder, mas com outras capacidades intelectuais e visões extremistas claras. A subversão das instituições democráticas que se tem vindo a alastrar nos últimos anos é perigosa em si mesma, mas pode ser catastrófica quando alguém mais inteligente, ambicioso e esclarecido de um qualquer extremo político receber de bandeja um país amorfo, onde a justiça, educação, media, economia, finanças, cultura e ciência foram esmagadas debaixo do asfixiante poder do Estado promovido por esta administração.
Proponho o seguinte exercício intelectual ao paciente leitor: imagine que daqui a uma ou duas décadas chega ao poder o mais extremista e perigoso dos políticos portugueses em ascensão, precisamente da área política contrária à sua. Se o leitor for de direita, peço-lhe que imagine um jovem Cunhal, perigoso, inteligente e corajoso, com uma visão claríssima do mundo que quer construir e disposto a todos os sacrifícios para lá chegar. Se o seu coração bate à esquerda, visualize um jovem Salazar, manhoso, intriguista e brilhante, igualmente certo do país que pretende edificar e sem escrúpulos para usar os métodos necessários para o conseguir.
O caminho da conquista do poder por esta personagem não é muito relevante. Talvez seja o cansaço da governação socialista durante meio século que abre a oportunidade ao arrivista, ou um golpe palaciano dentro do todo-poderoso partido. Possivelmente alguma catástrofe, guerra ou crise económica que subitamente mudam o plano de jogo ou até os ventos ideológicos que nos chegam do resto do mundo onde diferentes opções políticas vão sendo experimentadas. Assumo que o fará de forma mais ou menos democrática, mas é relativamente indiferente a forma como este chega ao poder, já que o que quero explorar são as armas que a hegemonia socialista presidida por António Costa lhe deixou como herança e o perigo que isso representa.
Este sujeito chega ao poder, mas mesmo sem maioria absoluta, consegue governar sem problemas porque ninguém lhe pode exigir que forme uma aliança com outros partidos que assegure uma governação estável. O precedente está criado e é aceite.
Uma vaga de famintos media, crescentemente dependentes de subsídios arbitrários, garantem ao novo governo uma barragem de artilharia que força um ou mais dos outros partidos a passar o Orçamento do Estado na Assembleia da República. Comentaristas e opinion makers, sempre necessitados de nomeações para cargos para os quais não têm qualquer preparação ou vocação, apressar-se-ão a mudar para o lado “certo” da barricada, como antes fizeram quando Ricardo Salgado, Joe Berardo ou José Sócrates caíram.
O Ministério da Verdade, qualquer que seja o seu nome oficial, terá necessariamente que ser contruído para proteger os Portugueses do perigo do discurso inconveniente para o poder. O governo controlará a seu bel-prazer o que pode e não pode ser publicado, decidirá que autores, comentadores e colunistas devem ter voz e que órgãos de comunicação deverão prosperar ou, caso mostrem falta de patriotismo, ser arruinados com processos judiciais, multas e impostos.
O Orçamento, dados os hábitos que Costa, Centeno e Leão já tinham habituado o país, é ignorado olimpicamente com uma variedade de subterfúgios onde as cativações mantêm um lugar de destaque. Esse documento, outrora o centro da política nacional, torna-se ao longo dos anos um mero sinal de que o governo deve continuar por mais um ano e uma oportunidade para fazer debate político, já que os debates quinzenais não passarão de uma curiosidade histórica praticamente esquecida.
A função pública é, por esta altura, pouco mais do que um braço armado do governo. Pedro Nuno Santos já demonstrara na TAP que era possível – contra todas as expectativas – despedir funcionários públicos ou de empresas públicas, enquanto António Costa e Fernando Medina abertamente contratavam às dezenas de milhar viciando e deturpando as regras de contratações do que um dia fora a CRESAP. Com a possibilidade de despedir e contratar de forma arbitrária e sem qualquer definição clara de quais os lugares de nomeação e quais os de carreira, os governos em funções fazem o que bem lhes apetece com cada vez menos controlo, transparência ou limites legais.
Medidas de excepção, como o recolher obrigatório, requisição civil, fecho forçado de negócios, limitação de movimentos e outras interferências estatais tornaram-se habituais durante a pandemia e já não exigem sequer estado de emergência, estando assim à disposição de qualquer primeiro-ministro no futuro.
A Procuradoria-Geral da República, tribunais, reguladores e outras áreas do Estado que um dia imagináramos independentes e que tantos problemas causaram aos principais agentes da política e finanças nacionais, já estarão devidamente domesticados. Os seus recursos usados para perseguir os que mostrem comportamentos ou opiniões heréticas, ou cujos proveitos não sejam dependentes dos favores do Estado.
Poderia continuar este exercício indefinidamente, olhando para as empresas zombi que dependem exclusivamente dos favores estatais, ou para as construtoras civis e banca cujas relações com o poder político se mantém mais ou menos onde sempre estiveram nas últimas décadas. Também poderia falar da ausência de avaliação no ensino e do controlo ideológico das novas gerações, ou da dependência dos agentes da cultura aos fundos estatais, tornando-os alvos fáceis de manipulação. A lista é longa, e o caminho – caso não seja invertido – cada vez mais estreito. Portugal, enquanto democracia ocidental e liberal, regride a olhos vistos e mais década menos década perderá esse estatuto.
Consegue imaginar o demagogo que escolheu no início do texto, esse jovem Salazar ou Cunhal, com todas estas armas nas mãos? Recentemente vimos democracias aparentemente estáveis regredirem para “democracias iliberais” ou, no caso dos Estados Unidos, como um presidente tentou vergar uma das mais sólidas e antigas democracias do planeta à sua vontade. Acredita realmente que, como democracia, Portugal será mais resiliente do que estas se permitirmos que as nossas instituições se continuem a degradar a este ritmo?
Uma democracia é tão forte quanto as suas instituições. Para além da constituição existe outra, não escrita, que se vai criando ao longo dos tempos. Que nos diz que não podemos ter esposa e marido ou pais e filhos no mesmo governo. Que as contratações do Estado devem ser baseadas no mérito e não no cartão partidário. Que os órgãos judiciais e os reguladores devem ser ferozmente independentes. Que os deputados não devem votar quando o que está em causa são os seus interesses pessoais e não os dos seus constituintes. Onde o Presidente da Assembleia da República representa o Parlamento e não uma facção. Que a televisão pública deve ser neutra em relação ao poder político. Onde o Parlamento tem oportunidade de confrontar o Governo recorrentemente.
O amadurecimento da nossa experiência democrática deveria levar a um fortalecimento destas instituições, mas a realidade mostra-nos que é precisamente o contrário que está a acontecer: a captura destas por parte do partido do Governo representa o esmorecimento da democracia e um enorme risco para o nosso futuro. António Costa não será certamente o primeiro ditador português do século XXI, mas pode bem ser o autor moral de grande parte dos instrumentos que este terá à sua disposição.