Deparo-me regularmente com três fenómenos que tornam quase inviável o diálogo político com os nossos esquerdistas domésticos: o primeiro é o julgamento de intenções, onde o nosso interveniente assume que qualquer pessoa que não seja “de esquerda” tem intuitos perversos e não deseja o melhor para o país e para os seus concidadãos. O segundo é aquilo que apelido de “excepcionalismo português”, uma espécie de doutrina que tem por fundamento que o nosso país é de tal forma exótico que o torna incomparável. Essa singularidade impede por isso que se faça qualquer juízo baseado no que outros países possam ter feito para resolver os mesmos problemas de que Portugal padece. O terceiro fenómeno é o de que os regimes comunistas e socialistas, todos, não eram verdadeiramente comunistas e socialistas e só alguém particularmente mal-intencionado poderia afirmar tal embuste.

Um processo de intenção consiste em desacreditar a pessoa com a qual se debate, acusando as suas intenções de condenáveis o que, sendo impossível de comprovar e verificar, deixa no ar uma suspeição de que não se consegue fugir. No fundo tem num diálogo o efeito que a justiça lenta tem num arguido: destrói-lhe a reputação sem se dar ao trabalho de provar algo substantivo em tempo útil. Em Portugal, este falacioso argumento tem uma história rica e foi utilizado consistentemente por grande parte das mais famosas personagens de esquerda. Álvaro Cunhal publicou em 1974 um pequeno livro com o inequívoco título de “A superioridade moral dos comunistas” onde afirma que “[o comportamento moral da burguesia é] individualismo e egoísmo ferozes, indiferença pela sorte dos seres humanos, rapacidade, venalidade, completa falta de escrúpulos, redução a simples mercadorias dos valores culturais e espirituais”.

Este líder marxista considera então que todos os “burgueses” são irrefutavelmente corruptos e têm as mais terríveis intenções. Boaventura Sousa Santos, outro ilustre pensador da mesma área política, chega ao ponto de definir o que é ser de esquerda e de direita da seguinte forma (“Portugal é um país mais à esquerda ou à direita”, jornal Público, 2015-10-01):

Numa concepção minimalista, esquerda é toda a posição política que promove todos (ou a grande maioria dos) seguintes objectivos: luta contra a desigualdade e a discriminação sociais, por via de uma articulação virtuosa entre o valor da liberdade e o valor da igualdade plasmada no equilíbrio entre os direitos civis e políticos e os direitos sociais, económicos e culturais; defesa forte do pluralismo, tanto nos media como na economia, na educação e na cultura; democratização do Estado por via de valores republicanos, participação cidadã e independência das instituições, em especial, do sistema judicial; luta pela memória e pela reparação dos que sofreram (e sofrem) formas violentas de opressão; defesa de uma concepção forte de opinião pública, que expresse de modo equilibrado a diversidade de opiniões; defesa da soberania nacional e da soberania nacional de outros países; resolução pacífica dos conflitos internos e internacionais. Ser de direita é ser contra todos ou a grande maioria destes objectivos.

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Resumindo, ser de Esquerda é ser dos bons e ser de Direita é ser dos maus. Para estes, e infelizmente também para muitos dos que os que por eles são influenciados, o conceito de “Esquerda” ganhou um sentido místico, quase religioso. Achei intrigante nos últimos meses ouvir tantos socialistas a advogar que este orçamento de Estado (derrubado por PCP e BE) era o “mais à esquerda de sempre”, numa formulação que era na realidade sinónimo de “o melhor orçamento de sempre”. Não é só a mente de comunistas e bloquistas que está refém deste paradigma “esquerda = bom, direita = mau”, mas também a da generalidade dos socialistas que, quer nos actos quer no palavreado, se acomodam mais ao discurso da esquerda radical do que ao centrismo dos bem mais prósperos partidos trabalhistas e socialistas da Europa.

A segunda característica que tenho encontrado é o “excepcionalismo português”. Quando confrontados com o sucesso de economias mais liberais do leste europeu, defendem-se dizendo que “não podemos comparar o incomparável”. Se falamos da liberdade económica das sociais-democracias da Escandinávia, reafirmam a sua convicção de que não temos qualquer relação com estas. E quando analisamos o estrondoso crescimento de Irlanda, Holanda ou Luxemburgo reafirmam que Portugal é único: ou o tamanho é diferente, ou a religião é diferente, ou a língua é diferente, ou a proximidade aos centros de poder é diferente, ou a herança histórica é diferente.

O grande interesse deste género de argumentação é que de seguida podem-nos propor qualquer explicação para qualquer problema que, não sendo possível provar o contra factual e não se aceitando qualquer comparação externa, permitem-se manter seguros, altivos e incontestáveis no alto da sua ignorância. Esta é uma das mais belas técnicas dos nossos mediáticos tudólogos. A título de exemplo, usam regularmente o Euro como motivo central para o nosso atraso económico, descartando a existência de tantos outros países que nos ultrapassaram usando exactamente a mesma moeda. Respondem-nos com a superior educação dos países ex-comunistas, desconsiderando quase meio século de democracia que nos deu tempo mais que suficiente para resolver isso e muito mais. A quase totalidade da nossa força de trabalho foi formada depois da revolução de abril. Sim, as comparações são úteis. Em especial para demonstrar aquilo que temos que mudar. Temos de nos comparar sempre, regularmente, minuciosamente e retirando daí conclusões para que possamos aprender não só com os nossos erros, mas também com os sucessos e falhanços de outros.

O terceiro ponto que aparece recorrentemente nestas discussões é o negacionismo comunista. Quando os comunistas e as suas mais recentes variantes são confrontados com os resultados práticos dos sistemas políticos que defendem, contrapõem reiterando que “isso” não é o verdadeiro socialismo/comunismo. Que esse nunca foi implementado. Na maior parte dos casos, essa renúncia é sempre tardia e envergonhada, como pudemos assistir com a dupla Chávez/Maduro, alvos de grande excitação até que a fome do martirizado povo venezuelano já não era disfarçável. Numa manifestação relacionada e tristemente olvidada, tivemos o líder do Partido LIVRE, Rui Tavares, a alcançar a proeza de nunca usar a palavra “comunista” no artigo “Na morte discreta de um genocida” (jornal Público, 2020-09-07) todo ele sobre o genocídio perpetrado pelo regime comunista de Pol Pot no Cambodja. Como diria um amigo meu comunista, de forma bem mais cândida quando confrontado com os crimes de Stalin: isso não pode ser verdade porque um comunista nunca faria tal coisa. No fundo, o negacionismo comunista acaba por ser uma versão menos eloquente da superioridade moral da esquerda. Sendo ideologias ditas científicas e que se julgam historicamente inevitáveis, não se podem dar ao luxo de errar, o que os obriga a usar métodos de opacidade e deturpação de factos para proteger o grandioso objectivo final. Em vez de se distanciarem desses criminosos, como a direita faz com Pinochet, Salazar, Mussolini ou Hitler, preferem desconversar, dissimular e titubear.

Não pode existir qualquer presunção de superioridade moral da esquerda ou da direita. Tirando algumas personagens mais sinistras, todos pretendemos o melhor para Portugal e para os portugueses, discordando apenas da melhor forma de lá chegar. A comparação com os outros países, em particular os que têm algumas semelhanças com o nosso, permitem-nos com grande certeza identificar o que temos que mudar nas nossas instituições para conseguirmos resultados tão bons ou melhores quanto estes. Não há nada de intrinsecamente errado com os portugueses, como comprova o sucesso generalizado destes no estrangeiro. E está na altura de os políticos assumirem as responsabilidades dos sistemas que defendem, demarcando-se claramente de políticas genocidas e criminosas onde quer e quando quer que tenham sido feitas por gente usando as suas bandeiras.

Certamente que existe muita gente séria em todos os campos políticos, mas temos que deixar de aceitar em silêncio e denunciar ferozmente estas técnicas mais manhosas de propaganda política. O diálogo político tem que passar por uma discussão sincera da validade e qualidade de cada proposta, seja ela de esquerda ou de direita, sem juízos de intenção, com estudos comparativos sérios e com honestidade política e histórica.

Não sou neutro no panorama político nem exijo neutralidade a ninguém, apenas lealdade e honestidade no combate político. Na minha opinião, as experiências de outros países mostram-nos claramente o caminho a seguir. E esse caminho é Liberal. Mas apreciava muito poder debater essas propostas sem ter que aturar a pretensa superioridade moral da esquerda, o ridículo excepcionalismo português e o deprimente negacionismo comunista.