Há quem viva no receio permanente de um aumento de peso da influência da extrema-direita e da extrema-esquerda nas nossas sociedades europeias, como consequência directa ou indirecta da crise que vivemos. Sem querer negar que esse risco exista, não me parece, francamente, que ele seja tão grande assim. Há algumas razões para optimismo, no plano político. Paradoxalmente, elas são também razões para pessimismo, no plano da reflexão.
É verdade que, deste ponto de vista, Portugal se encontra muito melhor colocado do que, por exemplo, a França, onde a Frente Nacional tem o peso que se sabe. Mas os problemas da França (que incluem, entre outras coisas, um antissemitismo ambiente cujos principais protagonistas vão mudando com os tempos) não começaram ontem, e a sociedade francesa tem-se aguentado. Não tenho dúvida que a Espanha também se vai aguentar, apesar do episódio Podemos. E a Grécia vai sobreviver ao entusiasmo do Syriza, e, mais modestamente, do Aurora Dourada. E por aí adiante. (Não menciono o UKIP no Reino Unido, porque o UKIP não é um partido de extrema-direita.)
Limitemo-nos a Portugal. Mesmo que seja verdadeira a tese segundo a qual há uma progressiva perda de representatividade dos principais partidos políticos, a verdade é que PSD e PS representam em conjunto uma enorme fatia do eleitorado, e não se vê como, num futuro próximo, possa deixar de assim ser. Acresce a isto que (e o mesmo vale para o CDS) se encontram politicamente muito próximos. É claro que há, sobretudo do lado do PS, proclamações, mais ou menos inflamadas, de diferenças irredutíveis. Mas essas proclamações exprimem muito mais a preocupação de garantir a unidade simbólica dos partidos do que diferenças reais quanto à concepção da sociedade. No que respeita ao essencial, o acordo entre CDS, PSD e PS é imenso.
Isso quer dizer que há uma concepção da sociedade que é, de forma mais consciente ou mais inconsciente, partilhada pela maioria do eleitorado. E quer dizer também que o assento do regime se encontra bem sólido, mesmo nos tempos que vivemos.
Há, é claro, a extrema-esquerda e o PC. Mas a extrema-esquerda esboroou-se, como lhe competia, e veleja lestamente em direcção ao porto de abrigo que é o PS. E o PC vive imobilizado no regime de dupla verdade em que se encontra desde há muito: por um lado, a defesa de uma sociedade não-democrática, segundo a acepção corrente de “democracia”; por outro, um impecável respeito pelas instituições. Nem de uma nem de outro vem perigo algum para o regime.
Isto, para mim, é bom. Os problemas que temos continuam a colocar-se no interior de uma comunidade política razoavelmente unida. Mesmo, repito, em tempos de crise apimentados por escândalos sortidos. Há razões para optimismo.
Num outro plano – um plano que, sou o primeiro a reconhecer, é menos imediatamente importante -, há também razões para pessimismo. É que, mesmo para alguém absolutamente nada dado a romantismos revolucionários, sente-se a falta de uma reflexão sobre os fundamentos e sobre o sentido da sociedade. É claro que os partidos nunca foram, por razões compreensíveis, o lugar tradicional para esse tipo de reflexão, que tenderia imediatamente a pô-los em questão. Mas dantes algo disso ainda costumava, mesmo que sob uma forma deformada (ideológica, digamos), neles transpirar. Hoje não. Chamar “neoliberal” (o que quer que isso seja) a Passos Coelho ultrapassa os limites do ridículo, tal como apelidar Costa de “socialista”, a não ser que se imagine nele a proverbial tendência da seita para a liberalidade no uso dos dinheiros públicos e um imorredoiro amor pela “cultura”, epifenómenos que pouco têm a ver com qualquer definição substantiva de “socialismo”.
Nem no CDS, nem no PS, nem no PSD aparece, mesmo de uma forma mínima e ténue, qualquer reflexão sobre os fundamentos e o sentido da sociedade. E que dizer do que se encontra à esquerda do PS? A extrema-esquerda, que substituiu há muito o projecto de uma sociedade alternativa pelo mercado mais rentável das “causas fracturantes”, deixou de se preocupar com essas questões E o PC, que tem uma genuína teoria alternativa da sociedade, e portanto dos seus fundamentos e do seu sentido, não ousa, como na outra história, dizer o seu nome. De qualquer maneira, mesmo quando a extrema-esquerda e o PC eram mais livres na matéria, o que diziam sobre problemas relevantes vinha sempre vestido de uma insuportável arrogância ideológica e trazia consigo a sombra pesada do apoio a alguns dos mais criminosos regimes políticos do século XX.
No entanto, a questão sobre os fundamentos da sociedade e sobre o seu sentido é uma questão central, até porque sem ela é impossível discutir com o mínimo de pertinência questões sobre o que é uma sociedade justa ou uma sociedade boa. Se o acordo quase generalizado sobre o primado das instituições democráticas é indiscutivelmente óptimo, ele acarreta também, em parte por causa da passividade que o estrutura, um desinteresse generalizado em relação a certas questões fundamentais.
Elas não são “de esquerda” nem “de direita”, convém sublinhar. Esquerda e direita têm idêntico direito e idêntica responsabilidade na colocação das questões relativas à justiça e à sociedade boa, apesar de a esquerda ter gozado durante muito tempo na opinião pública de um direito de propriedade, em boa parte espúrio, em relação ao problema da justiça social e à reflexão sobre a boa sociedade.
Repito mais uma vez. O acordo político que existe de facto, por mais disfarçado que seja pela retórica e outros enfeites destinados a estimular os aficionados dos diversos partidos, é uma coisa boa. Protege a sociedade e protege os indivíduos que a constituem. E isso é obviamente fundamental e condição de tudo o resto. Mas, pelo menos num mundo ideal, ele deveria vir acompanhado de um laivo de uma interrogação sobre o que nos faz viver juntos e sobre quais os modos de vivermos melhor. A interrogação é obviamente uma interrogação filosófica, mas de um tipo susceptível de ser praticada por cada um de nós. Sem ela, forçosamente, vivemos pior. Porque não é uma interrogação ociosa. É uma interrogação fundamental.