Ao contrário dos profissionais liberais, empresários ou dos que perderam o emprego, boa parte da população portuguesa continua a receber o vencimento por inteiro. Alguns tiveram uma redução de 66% porque acompanham os filhos na escola à distância. Pelo que tenho observado, para esta parte da população a experiência do confinamento não tem sido desconfortável. Pelo contrário, as últimas semanas foram vividas com um certo conforto, uma experiência para mais tarde recordar, não havendo muita pressa no regresso. Atenção que me refiro aos que se encontram na situação favorável que mencionei em cima e em que o outro membro do casal está em casa a tomar conta dos filhos. Atenção também que não incluo na minha análise os que têm consciência das dificuldades que aí vêm. Há quem se sinta beneficiado, protegido, mas que se preocupe, até porque, mais cedo ou mais tarde, também vai receber a conta. Este texto não é sobre eles. Refere-se aos portugueses que trabalham menos (a maioria do teletrabalho é uma ilusão ainda por cima com a família em casa), recebem igual, não têm o stress de deixar os miúdos na escola a horas, nem lidam com o trânsito ou com os transportes públicos. Por uns dias quebraram a rotina que os confinava, não em casa mas nas suas vidas. Presos nas suas casas sentem-se livres.
A somar à liberdade conquistada, António Costa promete que não aplicará medidas de austeridade. Com certeza porque considera ir embora antes, mas a mensagem de conforto fica. Costa até faz mais: culpa antecipadamente a Holanda para o caso de não conseguir saltar do barco a tempo e se vir forçado a impôr cortes nos salários, nas pensões e a aumentar os impostos. Dir-me-ão que ninguém gosta de estar fechado em casa. É verdade. É precisamente por isso que servem os passeios higiénicos. Ninguém está impedido de sair à rua para dar um giro, andar de bicicleta, correr por aí, apanhar ar puro, descontrair. É redutor, dir-me-ão ainda. Certo. Mas o Estado de Emergência também não vai durar para sempre. Diz-se que é até ao final de Abril, algures em Maio. Nessa altura, Junho estará à porta, com os seus feriados, e a seguir temos Julho e depois o aprazível mês Agosto. Praia e campo; mar e esplanadas. Portugal é um jardim à beira mar plantado, uma narrativa vendida pelo Estado Novo e repetida, sempre que possível, pela nova (ou será velha?) governação. O mundo pode ser caótico e selvagem que aqui dentro alguém nos protege. Até já nos disseram que podemos ir de férias. Somos crianças felizes a viver uma fantasia.
Toda a narrativa precisa de uma moral. Se Portugal é excepcional é de esperar que nos reconheçam como tal. Que o mundo olhe para nós e nos contemple. Que nos admire e louve. Para o comprovar o New York Times e o Der Spiegel já realçaram a nossa excepcionalidade. Vejam bem: não trabalhamos, ao contrário dos espanhóis não temos data para sair de casa, não porque tenhamos medo (que temos), mas porque somos responsáveis. Porque tomamos conta do próximo. Porque salvamos vidas. Porque formamos enfermeiros que salvam a vida de um primeiro-ministro estrangeiro. Porque somos moralmente superiores. Por qualquer coisa que vos passe pela cabeça. Alguém nos recorda que a vida comporta risco? Que temos de nos mexer ou ficamos na miséria? Um ou outro ainda prega no deserto e a resposta já se fez ouvir pelo chefe do nosso governo: o norte da Europa paga. Porquê? Porque se somos moralmente exemplares, cabe à Europa estar à altura e fazer a parte que lhe cabe: passar o cheque. Haverá cenário mais favorável para um político governar sem contraditório?
Portugal é um país avesso ao risco que se sente confortável e seguro em casa. Não é de agora porque não é de agora que nada se decide e tudo caia de podre. A Monarquia caiu de podre, a Primeira República, o Estado Novo (Salazar foi da cadeira), a guerra colonial, o PREC, até o endividamento crónico não vai ser resolvido. Os Portugueses são avessos ao risco e estão confortáveis e seguros em casa. Ganham o mesmo. Quem é que os faz sair com o perigo lá fora?
A juntar à apatia portuguesa deparamo-nos com a oportunidade que esta pandemia representa para certa esquerda: o sonho de pôr um ponto final no capitalismo e vingar a derrota do comunismo. Quando o país sair de casa encontrará uma economia de rastos segura por um estado débil, sem dinheiro mas com a capacidade de remeter a conta para os nossos filhos e netos. Aqueles de quem, vezes sem conta, dizemos que gostamos muito vão ter uma surpresa engraçada quando tiverem idade para perceber. Com as empresas destruídas e o sistema de produção de rastos há quem encare o cenário como uma oportunidade de ouro para desenhar uma sociedade nova. Cada dia a mais em casa é um ponto mais a favor das suas intenções. Estes ideólogos são o únicos que a longo prazo esperam ganhar com a nossa apatia, sossego e protecção.
Posso ser injusto com este texto demasiado cru. Mas é importante que tenhamos consciência do seguinte: convencer os Portugueses a ficarem em casa não foi difícil. Forçá-los a sair novamente, cancelar as férias para que se trabalhe em Agosto, aumentar os impostos e cortar os rendimentos para pagar o custo desta paragem, isso sim exige coragem.