As coisas não mudam sozinhas – devo dizer que gosto da palavra «coisas» pelo menos tanto quanto Agostinho da Silva, e do verbo «mudar» pelo menos tanto quanto José Régio. Como não mudam per se têm de ser mudadas. E isto vem a propósito do PSD e da urgência de mudar as coisas. A saber, a percentagem de mulheres entre os lugares elegíveis para a Assembleia da República, onde as mulheres são 37% dos deputados, e o PSD, com a percentagem de mandatos mais baixa, não contribuiu para o crescimento deste número.

Num país onde mais de metade dos seus residentes são mulheres, não se percebe a fraca representação feminina num dos partidos fundadores da democracia portuguesa e o mais inclusivo da sua história – como não se compreende que em 48 anos de democracia tenhamos tido apenas um governo liderado por uma mulher, Maria de Lurdes Pintassilgo, em 1979. O PSD teve apenas uma líder, e por um breve período de menos de dois anos, Manuela Ferreira Leite, em 2008. Isto é, 23 anos depois de Leonor Beleza ter sido Ministra da Saúde, 23 anos depois de Cavaco Silva, um homem, ter rasgado o cânone masculino para uma das grandes pastas da governação.

Aos que afirmam que a presença da mulher na política tem de ser orgânica e meritocrática e não através das quotas, recordo que a presença do homem na política foi através de quotas 100% masculinas, e com ou sem mérito. A ideia de uma mulher ter de ser de superior competência para poder entrar no mundo masculino da política é intrinsecamente machista: aos homens não é exigida qualquer superioridade de competências. Podem ser nulidades. Tivemos várias – algumas ainda frescas na memória.

Defendo as quotas. Espero uma Assembleia da República com 50% de representação feminina. O mesmo para qualquer governo e os seus mil e um gabinetes: 50%. Ou em qualquer empresa pública, ou com dinheiro público: 50%.

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A forma perversa de admissão da mulher aos espaços dominados pelo homem tem a sua raiz num momento fundante para os direitos da mulher, porém com lacunas profundas. As sufragistas recorreram aos homens para que alterassem a lei e, em simultâneo, ao fazê-lo, apresentaram-se de acordo com as expectativas masculinas e em favor dos interesses masculinos. A mulher pretendia com o seu voto «elevar» a sociedade. Não era fazer ou refazer ou discutir política, legislar. Elevar. Mesmo a extraordinária Harriet Taylor que já ao início do século XIX defendia o direito de a mulher trabalhar fora de casa e em lugares públicos, defendia também que tal só poderia acontecer com uma mulher casada se um número adequado de criadas garantisse o bom funcionamento doméstico e o cuidado dos filhos. Ou seja, ser criada era mais uma condição social tendente ao imobilismo do que uma profissão; era preciso ser de classe média para abrir a porta aos direitos da mulher. Dos filhos das criadas quem cuidava? Quem lhes garantia o bom funcionamento doméstico? Este foi, assim, um feminismo de segmento. Pior. Foi agravado no seu enviesamento vitoriano e anglo-saxónico quando a mulher, mesmo aquela que reclamava o voto, se dessexualizou, se constituiu como impoluta, como cuidadora primordial, fiel depositária e juiz da moral e bons costumes em resposta à lei que permitia que qualquer mulher pudesse ser internada compulsivamente para averiguação genital, caso sobre ela recaísse qualquer suspeita de conduta sexual imprópria ou fosse acusada de prostituição – Josephine Butler combateu ferozmente este abuso sobre as mulheres enquanto ela própria se enformava nas expectativas masculinas vitorianas da fada do lar, do anjo da casa. Não deixa de ser esquizofrenizante.

Quando o feminismo do lado norte-americano se levantou num arco muito mais amplo com Sojourner Truth e Ida B. Wells, ex-escravas, portanto, naturalmente abolicionistas, anti-segregação social e activistas dos direitos humanos, já que pretendiam os direitos para todos, mulheres e homens de qualquer raça, foi obliterado por mulheres como Elizabeth Cady Stanton, figura de proa de um feminismo incapaz de perceber os discursos e acções inclusivas originados na experiência da própria exclusão e para quem a emancipação da mulher era para todas as mulheres. O direito ao voto era para todas as mulheres. Não eram questões só de género, nem de religião, raça ou credo. Este movimento que poderia ter sido global foi engolido por Stanton e as suas herdeiras que lenta e progressivamente dominaram o pensamento feminino, o feminismo, decidindo o que era e para quem era, e finalmente os estudos femininos.

O mundo dos homens foi construído por homens e à medida dos seus interesses e competências. Nos termos até da sua própria biologia que lhes permitiu um ser político à medida da liberdade concedida pelo corpo, e um ser profissional, em igual liberdade e à medida das suas necessidades.

Parte do feminismo construiu-se em simetria com o marxismo: onde num se lê «homem» no outro lê-se «capitalismo» e temos o nome do opressor. Mas é falso – e nos dois casos. O homem não oprimiu a mulher. As gravidezes sucessivas oprimiram a mulher. A amamentação sucessiva. Cuidar da sobrevivência dos filhos, um após o outro, numa cadeia ininterrupta até ao fim da idade fértil oprimia a mulher. Se a biologia deu liberdade ao homem, à mulher tornou-a refém do seu corpo até que ela controlou a sua capacidade reprodutora. Basta consultar os números da natalidade, do acesso ao ensino superior, antes e depois da pílula. O que era uma consequência do acto sexual passou a ser uma decisão do foro reprodutivo e familiar. A mulher libertou-se para o mundo profissional e político.

Desde então, deste extraordinário e mínimo comprido, a pílula, a mulher posicionou-se naquele mundo antes vedado, onde só havia entrado como excepção. Mas vivemos no tempo da regra: a mulher não pode ficar à espera de autorização para entrar. O movimento não tem de ser orgânico e meritocrático. O mérito não tem nada a ver com isso. Há na política homens e mulheres de excelência. E de uma mediocridade constrangedora. É lamentável, mas é assim.

Portanto, e para dizer a verdade, de Luís Montenegro não espero que venha defender o lugar da mulher. Nem espero que os homens sentados nesses lugares desde 1974 concordem ou aprovem. Estes são os que falam da obrigatória organicidade, da artificialidade das quotas e das super-mulheres com os seus super-poderes. Mas espero das mulheres do PSD que reivindiquem os lugares que lhes cabem sem contar que lhes sejam entregues. E sem qualquer tique de superioridade meritocrática: estar ao serviço dos portugueses chega.