Na semana passada, a Maria João Marques escreveu (mais) um artigo argumentando que as mulheres são prejudicadas no mercado laboral (e também no mercado político), por isso clamando políticas activas que contrariem a baixa participação das mulheres na política ou que contribuam para anular as desigualdades salariais no mercado de trabalho.
Como é costume em reacção a este tipo de artigos, logo se levantou, “em nome da meritocracia”, um coro contra estas políticas que “menorizam as mulheres”. Os argumentos são sempre os mesmos, mas há um, em particular, que sempre me chama a atenção. É o argumento do mercado, que se pode enunciar mais ou menos assim:
“Se as mulheres fossem tão produtivas como os homens então qualquer empresário inteligente preferiria contratar mulheres enquanto os salários destas fossem mais baixos, aumentando assim o lucro.”
O corolário lógico desta tese é que é impossível que a produtividade das mulheres seja igual e os seus salários mais baixos. Este argumento sempre me fascinou. Parece que os mercados são um conto de fadas em que nada de injusto acontece. Cada um recebe de acordo com a sua produtividade e tem o que merece. Se os negros ganham menos só pode ser porque são menos produtivos, caso contrário todos os empresários contratariam negros. Portanto, só quem não percebe nada de economia é que pode pensar que as mulheres são discriminadas. É como se a economia pudesse ser estudada à margem da sociologia ou da história; ou, se se preferir, como se o mercado não estivesse enquadrado numa sociedade real.
Mas o que dizem os grandes economistas? Um dos primeiros a dedicar-se a este assunto foi Gary Becker, Prémio Nobel em 1992, membro da famosa Escola de Chicago, pouco conhecida pelas suas tendências esquerdistas. Becker escreveu um livro que se tornou um marco neste assunto: “The Economics of Discrimination”. Nesse livro, Becker descreve em que condições o racismo ou o sexismo podem reduzir os rendimentos da facção discriminada. Pegando no caso do racismo, Becker demonstra que se o número de empresários racistas for suficientemente elevado então o salário de equilíbrio dos negros será mais baixo do que o dos brancos.
Outra teoria muito popular, da autoria de Kenneth Arrow e de Edmund Phelps (ambos vencedores do prémio Nobel da Economia), é a da discriminação estatística. De acordo com estes autores, mesmo que, à partida, não haja qualquer racismo ou sexismo tal não implica que o equilíbrio de mercado não acabe por prejudicar um determinado grupo. Muitas vezes esta teoria é apresentada na forma de uma profecia auto realizável. Por exemplo, nos Estados Unidos, há alguns dados empíricos que sugerem que, nos restaurantes, os negros dão gorjetas menores do que os brancos. Por outro lado, há também dados que mostram que, nos restaurantes, os negros são mais mal-tratados do que os brancos. Como distinguir a causa e o efeito? Por um lado, é possível que os empregados de mesa tratem pior os negros porque esperam piores gorjetas; por outro, é possível que os negros dêem piores gorjetas precisamente porque recebem um serviço de pior qualidade. Quer um quer o outro vêem as suas expectativas confirmadas e, portanto, consideram o seu comportamento como adequado. Não é difícil de aplicar um raciocínio semelhante ao caso das mulheres, em que, eventualmente, recebem salários menores porque se espera que se dediquem mais a tarefas familiares, em vez de apostarem na carreira, e, simultaneamente, que as mulheres invistam menos na carreira precisamente porque os retornos desse investimento sejam menores.
Mais recentemente, cruzei-me com um artigo de Kaushik Basu, professor na Cornell University, que não ganhou o Prémio Nobel, mas já foi economista-chefe do Banco Mundial e é, actualmente, o presidente da International Economic Association. Nesse artigo, Basu levanta uma hipótese interessante. Será possível que a discriminação seja um resultado de complementaridades estratégicas que tornam um dado grupo mais produtivo do que outro?
Só para ilustrar a ideia, deixe-me considerar um exemplo anedótico. Imagine que existe uma agiota que pretende emprestar dinheiro (para depois cobrar juros elevados). Imagine também que nesta cidade há um gordo que pretende fazer uma lipoaspiração para ficar mais sexy. Finalmente, admita que existem dois cirurgiões plásticos de duas etnias diferentes: um branco e um negro. Para terminar, imagine que foi inventada uma nova máquina lipoaspiradora que permite fazer um melhor serviço, mas que os cirurgiões plásticos não têm dinheiro para a comprar e que, portanto, precisam de pedir um empréstimo.
A agiota vai querer emprestar dinheiro ao cirurgião que deixa o seu cliente mais satisfeito, pois isso aumenta a probabilidade de o lipoaspirado pagar o serviço ao cirurgião e de este pagar a sua dívida (com juros). Por outro lado, o gordo prefere ir ao cirurgião plástico que comprou a máquina nova, pois isso garante-lhe melhores resultados. Ou seja, há aqui uma complementaridade estratégica. Se a agiota e o gordo escolherem o mesmo cirurgião ficarão mais bem servidos.
Para perceber como o equilíbrio deste jogo pode criar situação em que um grupo étnico é prejudicado, admita que a utilidade de que a agiota e o gordo usufruem se escolherem o mesmo cirurgião corresponde a 2000€ e que se escolherem cirurgiões diferentes então a utilidade é apenas 1000€. Considere que quer a agiota quer o gordo podem seguir uma de três estratégias: 1º escolher o cirurgião branco, 2ª escolher o negro e 3ª serem daltónicos. A matriz de pagamentos deste jogo* será dada por:
A verde estão assinalados os três Equilíbrios de Nash (outro Prémio Nobel) que este jogo tem. ** E a conclusão é forte. Se os outros discriminam, então é do seu interesse discriminar, também. Neste exemplo, a discriminação é feita com base na etnia, mas evidentemente que a discriminação podes ser feita com base em qualquer outra característica, como o sexo ou, como lembra Basu, talvez por ser indiano, a casta. A etnia, ou qualquer outra característica que escolhamos, funciona como um Ponto Focal — conceito desenvolvido por Thomas Schelling (desculpem, mais um Nobel) para explicar como os jogadores se podem coordenar para escolher um dos múltiplos equilíbrios possíveis.
Não se deixe enganar pelo meu exemplo simplificado. Kaushik Basu mostra que este tipo de complementaridade estratégica pode acontecer com exemplos bem mais realistas. Caso este jogo tenha alguma adesão à realidade (ou seja, se os outros discriminam eu só tenho a ganhar se discriminar também), então a conclusão é devastadora para quem acredita no poder de mercado para acabar com as discriminações raciais, religiosas, sexuais ou outras. A desigualdade resulta do próprio mercado e não apesar do mercado. E, sendo assim, e se quisermos viver num mundo com menos discriminações arbitrárias, algumas medidas correctivas são necessárias.
* Para perceber a esta matriz de pagamentos, tenha em atenção que se ambos escolherem branco (ou negro), então ambos têm um retorno de 2000€; caso uma escolha seja branco e a outra negro, então ambos terão um retorno de 1000€; e, finalmente, se ambos seguirem a estratégia neutra, então, com 50% de probabilidade, têm um retorno de 1000€ e, com 50% de probabilidade, um retorno de 2000€ (ou seja, um retorno esperado de 1500€).
** Diz-se que num jogo não-cooperativo se está num equilíbrio de Nash quando cada jogador, dada a estratégia dos outros, não tem qualquer incentivo a mudar de estratégia.