O que fez o Governo recuar será sempre um mistério. Depois da incompreensível dramatização com a ASAE em frente dos supermercados com um secretário de Estado, de terem repetido até à exaustão que em Espanha não tinha resultado – o que não é verdade – e ainda após a quase unanimidade dos economistas contra a medida, tudo indicava que o IVA zero num conjunto de produtos alimentares iria ficar pelo caminho. Não foi assim.
O IVA é um imposto regressivo, pesa mais nos mais pobres do que nos mais ricos. Uma eliminação da taxa num cabaz alimentar, temporária e reduzida que seja, reduz a desigualdade, torna menos pesada a factura do supermercado para todos os que têm rendimentos muito baixos. Beneficia igualmente os mais ricos, mas ganham também os pensionistas, com baixas ou altas reformas, que não tiveram nenhum apoio neste último pacote de apoios anunciado pelo Governo.
A questão aqui é se, com o mesmo ou menos dinheiro, o Governo não conseguiria ser mais eficiente naquilo que deve ser o objetivo em tempos de inflação: proteger os mais vulneráveis de uma perda de poder de compra que, no caso deles, pode significar não ter dinheiro suficiente para comer. O perfil desta inflação, como tem sido muito referido, é especialmente gravoso para os mais pobres, uma vez que os preços sobem a um ritmo mais elevado na alimentação e, até há pouco tempo, na energia. Tal corresponde em geral a metade ou mais das despesas familiares de quem está na base da distribuição do rendimento.
O FMI diretamente, o BCE indiretamente e em geral a maioria dos economistas têm recomendado que se evitem medidas abrangentes e especialmente com efeitos nos preços, optando por transferências de rendimentos para as famílias mais vulneráveis. Há várias vantagens neste foco nos mais pobres: atinge-se diretamente o objetivo, que é proteger quem está a sofrer mais com a perda de poder de compra; gasta-se menos dinheiro, o que é especialmente importante num país com a dívida de Portugal, e não se cria uma ilusão de controlo de preços com efeitos nefastos no reajustamento da economia e que mais cedo ou mais tarde terá de ser revertido.
Claro que numa conta de supermercado gastar cem ou 106 euros em alimentação faz diferença para quem tem pouco dinheiro. Mas não faz diferença nenhuma para quem tem rendimentos mais elevados, correspondendo basicamente a um desperdício de dinheiro público que faz muita falta a um país com os problemas que Portugal tem e com a dívida pública que ainda acumula.
Os 410 milhões de euros que o Governo prescinde de receita de IVA para garantir a taxa zero em 44 produtos, daria, a cada uma das três milhões de pessoas identificadas como vulneráveis, mais 133 euros este ano. Somavam-se aos 30 euros por mês mais os 15 euros por dependente que custarão 580 milhões de euros em 2023. O Governo podia até escolher reduzir a factura para os cofres públicos, acrescentando apenas mais cem euros.
De acordo com o FMI, anular totalmente o aumento do custo de vida de 20% das famílias com os rendimentos mais baixos custaria aos governos 0,4% do PIB de 2022, em média, para os países europeus. Os 2500 milhões que o Governo anunciou que iria gastar no conjunto de medidas anunciadas na sexta-feira passada correspondem a cerca de 1% do PIB projectado para este ano.
O segundo problema da actuação ao nível dos preços, através de reduções do IVA ou outras medidas, é mascarar a inflação. Os governos devem tentar anular ou, no mínimo, mitigar, os efeitos da inflação nas famílias com rendimentos mais baixos. Os governos não estão a controlar a inflação, contrariamente ao que o primeiro-ministro disse na crítica que fez ao BCE, no que foi aliás desmentido pelo governador do Banco de Portugal. Corre-se aliás o risco de estar a controlar artificialmente os preços à custa do Orçamento do Estado, caminho que terá de ser um dia abandonado e que só não é muito grave porque é reduzida a dimensão das medidas até agora adoptadas.
Se os governos não forem prudentes e focados nas intervenções que estão a fazer corremos mesmo o risco de pagar uma factura ainda mais elevada, em subida de juros, neste combate contra a inflação.
O Governo de Lisboa não está, contudo, sozinho. A esmagadora maioria dos países europeus está a optar por reduzir o IVA na alimentação e na energia, contrariando as recomendações dos economistas, do FMI e do BCE. O isolamento crescente de Portugal no que ao IVA diz respeito e os problemas políticos que o Governo tem enfrentado sem que tenha conseguido liderar a iniciativa política podem ser a explicação para esta escolha. É mais política do que políticas.