A redução do IRS e o fundo para investir no futuro são as marcas da proposta de Orçamento do Estado para 24, que sintetizam bem a importância que o Governo de António Costa dá, como sempre deu, à comunicação com o eleitorado, conseguindo conciliar disciplina orçamental com um discurso de distribuição de dinheiro por todos, que a todos agrada. A inflação veio facilitar ainda mais esta arte política de tirar, fazendo-nos acreditar que está a dar.

A redução do IRS é sem dúvida o melhor exemplo dessa estratégia. Enquanto o fundo de investimento para investir no futuro consegue “pagar” dívida pública e calar os que queriam saber o que ia o Governo fazer com a sua “folga” orçamental. Todos os que pensam que conseguem convencer os outros com argumentos racionais desenganem-se.

Aprendam com o que o Governo de António Costa vai fazendo, conseguindo colocar o Estado a pão e água apesar de nos dar a todos só e apenas novidades de que todos vamos ter mais dinheiro. Tudo isto atinge o seu expoente máximo nas propostas de Orçamento do Estado. E a de 2024 não é exceção.

Comecemos pela descida do IRS. O quadro que está na página 118 do relatório da proposta diz-nos que o Estado vai receber menos 1682 milhões de euros de IRS, mas, em contrapartida, vai buscar mais 1299 milhões de euros em impostos indiretos como o IVA, o ISP, o ISV e o IUC. De tal maneira que as receitas fiscais previstas (ver página 128) crescem 4,8%, ligeiramente acima do que se prevê para o crescimento nominal do PIB (4,4%), levando obviamente ao aumento da carga fiscal – o Governo não gosta do conceito –, medida pelo rácio entre as receitas fiscais e o produto.

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Esta prática, de reforçar a tributação indireta, tem sido uma das marcas dos governos de António Costa. Os impostos indiretos, como se sabe, são regressivos – ou seja, pesam mais sobre as pessoas de mais baixos rendimentos. No passado eram muito criticados pela esquerda, que preferia fazer a redistribuição pelos impostos diretos. Eram os economistas mais liberais que, no passado, defendiam que os impostos deviam preocupar-se mais com eficiência – não distorcendo os preços relativos – do que com a equidade, enquanto a redistribuição se devia fazer por via da despesa. Mas o PS aderiu às teorias liberais, não se sabe se por convicção se por ter nos impostos indiretos, conhecidos como narcotizantes, uns bons aliados para aumentar impostos dizendo que os desceu.

Para Fernando Medina, esta descida do IRS, muito acima do que aparecia como compromisso no Programa de Estabilidade, tem como objetivo moderar a desaceleração da economia, evitando até uma eventual recessão – aparentemente este terceiro trimestre do ano já terá sido de quebra da produção, a confirmarem-se as estimativas do Banco de Portugal.

Como é que dando com uma mão IRS e tirando com a outra por via dos impostos indiretos pode o Orçamento ser expansionista? De facto pode se admitirmos que mais dinheiro no bolso transmite a sensação de se estar mais rico, não se reparando que quando se anda de carro ou vai às compras estamos a dar parte do que recebemos ao Estado. E mais do que por via do IRS, a orientação expansionista pode estar a ser dada através do reforço dos apoios sociais – mesmo que também esses em parte regressem para o Estado. Só o fim do IVA zero significará mais 510 milhões de euros de receita fiscal.

Em termos globais, se usarmos o indicador mais grosseiro de orientação da política orçamental, Fernando Medina desenhou uma conta mais expansionista do que está a ser a de 2023. Ou, melhor dizendo, menos contraccionista. O excedente orçamental sem juros da dívida pública (saldo primário) diminui de 3% para 2,5% do PIB. É pouco sim e é com cautela que se pode falar de orçamento expansionista quando estamos com excedente. Mais poderoso é o discurso que anuncia a descida do IRS e o facto de todos terem mais dinheiro no bolso em 2024 por pagarem menos IRS.

A outra marca interessante deste Orçamento é a forma como o Governo ultrapassou, politicamente, as pressões para gastar o excedente orçamental. O ministro das Finanças Fernando Medina anunciou a criação de um fundo, uma espécie de “porquinho mealheiro”, para realizar investimentos quando os fundos europeus começarem a reduzir-se ou para aplicar na ferrovia. Deixando para outra oportunidade a questão da ferrovia – que merece ser investigada por causa do dinheiro que já ali se gastou sem que nada aconteça –, vale a pena pensar um pouco sobre este “fundo”.

Os pouco mais de dois mil milhões de euros de excedente orçamental vão ser usados para comprar dívida pública. Ou seja, o Estado faz uma poupança (o excedente) que aplica em si próprio (emprestando ao Estado com a compra de dívida pública) para receber juros que são pagos por si próprio.

O resultado final desta operação financeira é a redução da dívida pública, como se o Estado a tivesse pago. Mas não pagou, porque o pagamento dos juros vai continuar a aparecer nas contas do Estado reduzindo o saldo, neste caso o excedente. À partida seria mais eficiente pagar a dívida, reduzindo assim os encargos com juros, em vez de criar o fundo, mantendo viva a dívida, ainda que nas mãos do Estado. Para Fernando Medina a vantagem é que a qualquer momento pode transformar essa dívida em dinheiro, vendendo-a no mercado. Mas, se o fizer, aumentará contabilisticamente a dívida pública.

Enfim, olhando para esta engenharia, a vantagem que se encontra é basicamente política. Com a criação desse fundo o Governo conseguiu acabar com a pergunta: para onde vai o excedente? Que tinha subjacente o objetivo de o gastar distribuindo-o pelos portugueses. O custo dessa pacificação política pode ser pagarmos mais juros no Orçamento do Estado. Mas daqui a uns tempos ninguém se lembra e o Governo pode pagar a dívida com esse dinheiro, se precisar.

Na frente financeira o Governo de António Costa consegue em geral fazer o que é preciso fazendo-nos crer que faz o que nós queremos ou o que é mais popular. Na era de Mário Centeno, em que a distribuição do dinheiro do Tesouro era mais difícil de fazer, foi-se usando essa técnica degradando os serviços públicos. Aquilo que hoje vemos no funcionamento do Estado é a herança dessa política. Nesta era de Fernando Medina, com mais dinheiro, em parte por causa da lotaria caída do céu que se chama inflação, pode-se ser um pouco mais generoso sem cortar no Estado.

A tática de ser austero mascarando-se de esbanjador tem sido muito eficaz a prosseguir a disciplina orçamental sem perder votos. O problema é que, entretanto, se parece ter perdido a capacidade de fazer, de concretizar, com a energia toda gasta a encontrar narrativas para fazer a gestão austera do Orçamento parecer esbanjadora e popular.