1 O campeonato de futebol retomou ontem e continuará nas próximas semanas com estádios vazios — apesar de ser ao ar livre, as autoridades de saúde consideram que há risco de criar focos de contágio. Há dias, e muito bem, também retomaram os espectáculos em sala fechada e, no Campo Pequeno, houve mais de duas mil pessoas na plateia. A dúvida que fica no ar é esta: se é possível haver milhares de pessoas dentro de uma sala de espectáculos, o que impede que milhares de pessoas assistam a futebol num estádio?
2 A máscara no parlamento, ao início, não era para ser usada — Ferro Rodrigues recusou-se a que as comemorações do 25 de Abril fossem uma festa de mascarados. Depois, passou a ser obrigatório usar máscara, excepto quando se discursava. Ainda depois, a obrigatoriedade estendeu-se aos discursos — o uso de máscara seria incondicional. Por fim, orientações de há dois dias vieram explicar que, afinal, não é preciso usar máscara na Assembleia da República, excepto em casos em que, discursando, não se consegue garantir as distâncias de segurança. A desorientação soa a caricatura, mas tem uma fácil explicação: desde o início, o parlamento adoptou sempre regras excepcionais, à medida do conforto dos deputados e substancialmente diferentes das que foram atribuídas às empresas e locais de trabalho em espaços fechados.
3 Enquanto vigorou Estado de Emergência, as comemorações do 25 de Abril e do 1 de Maio foram caracterizadas por grandes ajuntamentos de pessoas — num contexto em que era proibido a alguém estar na rua com dois amigos. As autoridades esforçaram-se por justificar esse excepcionalismo, viabilizado legalmente pelo Presidente da República e apaixonadamente defendido em discurso na Assembleia da República. O mesmo Marcelo que, depois, tratou de se distanciar das comemorações da CGTP/ PCP e, agora em situação de desconfinamento, organiza as comemorações de 10 de Junho com apenas 8 participantes, criticando duramente as opções de parlamento e CGTP/ PCP — sim, as opções que anteriormente havia defendido e dado enquadramento legal. Se a incoerência quanto ao cumprimento das regras sanitárias é inequívoca, não sobram dúvidas sobre a coerência das práticas: o poder político fará sempre o que quiser, defenderá uma coisa e o seu contrário, e terá sempre razão.
4 Marcelo criticou a imprudência dos jovens que, nesta fase de desconfinamento, têm organizado festas e convívios nas quais se quebram as regras de segurança sanitária. Tem razão. Mas como criticar esses jovens, compreensivelmente sedentos de interacção social, quando grandes festivais e ajuntamentos, como a festa do Avante, são permitidos devido à sua natureza política? Afinal, se o que separa a segurança da insegurança é um cartão de militante, as regras deixam de o ser.
A lista de incongruências quanto às regras sanitárias é longa e estende-se a várias áreas, dos transportes às praias. E, individualmente, cada um destes casos já foi amplamente analisado e comentado — seja nas contradições políticas ou na ausência de uma comunicação clara e eficaz das autoridades de saúde. Nada de novo? Não é bem assim.
O que falta dizer é que, no seu conjunto, essas situações desenham um retrato de Portugal que em nada nos lisonjeia: um país onde as regras só existem para o povo e as excepções se aplicam sistematicamente às elites. O uso de máscara é obrigatório para trabalhadores nas empresas, mas dispensável para deputados. As aglomerações são proibidas aos cidadãos mas incentivadas nos contextos políticos. Os mais populares festivais de Verão são forçados ao cancelamento, mas os festivais de Verão partidários mantêm-se. Os eventos culturais de elite realizam-se em salas com plateias compostas, os eventos culturais e desportivos de maior interesse popular não podem ter público.
Ao contrário do que se tem debatido, não importa determinar se o vírus é ou não democrático, se atinge mais os ricos ou se vitima mais os pobres. Importa, sim, sublinhar que o combate ao vírus não tem sido democrático, porque não trata todos por igual. Este é um facto objectivo: as distinções que separam pobres e ricos, povo e elites, vêm das próprias autoridades, que determinam as regras e, logo a seguir, desenham as excepções à medida da força dos grupos de influência. Eis um país onde o estatuto social e o acesso ao poder ainda definem liberdades e garantias. Depois de expor as desigualdades sociais, económicas e educativas da população, a Covid-19 também veio lembrar que Portugal é muito menos livre, justo e democrático do que pensa ser.