Falar da possibilidade de guerra entre países da Europa Ocidental não cabe na cabeça de ninguém. Afinal, os países europeus estão unidos entre si por uma profunda união de interesses comuns, partilham valores e princípios, leis, instituições, mercados, até uma moeda.
Nem todos fazem parte dessa União, mas os que estão de fora, como a Noruega ou a Suíça, interagem com ela, têm acesso ao seu mercado, circulam livremente, participam nos seus programas científicos, contribuem para o seu funcionamento. A integração europeia cumpriu a sua missão e retirou para sempre do léxico dos cidadãos europeus a palavra “guerra” aplicada ao continente.
Para sempre? Bem, talvez não. Ou, pelo menos, não para toda a gente. Anteontem, Lord Michael Howard declarou – por outras palavras, mas o sentido é inequívoco – que o Reino Unido poderia ir para a guerra para proteger Gibraltar contra a Espanha, comparando este “país de língua espanhola” com “outro país de língua espanhola”, a Argentina da Junta Militar e a recuperação das Maldivas “manu militari” por Margaret Thatcher.
Michael Howard é um antigo líder do partido conservador britânico. Houve reacções ultrajadas do lado de cá da Mancha e o ministro dos negócios estrangeiros espanhol aconselhou calma ao governo britânico. Downing Street, através do porta-voz oficial de Theresa May, não desautorizou o antigo líder conservador, considerando que ele se limitara a tentar qualificar a determinação do governo em proteger a soberania de Gibraltar.
Sob domínio britânico desde 1713, domínio sempre contestado por Espanha, Gibraltar é um símbolo do poder militar inglês, que logrou manter a soberania sobre o minúsculo território de 6,8 km2 geograficamente ligado a Espanha por mais de três séculos. Ora o documento da União Europeia com as directrizes para as negociações sobre o “brexit”, ainda apenas uma proposta a ratificar pelo Conselho Europeu, prevê que qualquer acordo entre o Reino Unido e a União só se aplicará a Gibraltar se essa for a vontade de Espanha. O território, parece determinar o mandato negocial europeu, pode assim ser excluído dos termos de um eventual acordo comercial entre as duas partes.
A carta de Theresa May a accionar o artigo 50º, prévia ao documento europeu, não faz qualquer menção ao território; essa ausência foi considerada como um reconhecimento de que Gibraltar não faz parte do Reino Unido, tese de pronto rejeitada pelo governo britânico. E se é certo que 99% dos gibraltinos votaram em 2002 pela continuidade no Reino Unido, certo é também que, no referendo de 2016, 97% escolheram permanecer na União Europeia. É mais um nó górdio a saltar da caixa de Pandora aberta pelo “brexit”, a juntar às dezenas de outros, pouco menos que insolúveis, do seu “caderno de encargos”.
Gibraltar, o rochedo, é apenas uma das pedras no sapato do processo de saída britânica da União, que ainda agora começou e já ameaça acabar mal. Não há melhor ilustração do que pode suceder do que o facto de, pela primeira vez em décadas, um político europeu, antigo líder conservador britânico, se julgar no direito de evocar a possibilidade de uma guerra na Europa entre membros da mesma união, económica, política, social, cultural, cidadã. E o mal, nestas coisas da guerra, como nos outros flagelos que corroem as sociedades humanas e em particular as democracias, é começar a falar-se deles como possibilidades…
Na política externa britânica, existe há muito uma trave mestra fundamental, princípio paradigmático de uma abordagem realista e vencedora: ter sempre aliados no continente, evitando que um poder hegemónico se imponha e logre unir as restantes nações europeias entre si, e provavelmente contra si (contra o Reino Unido). Talvez o “brexit” consiga, mau grado a vontade em contrário dos líderes europeus e sobretudo, não duvido, dos seus povos, aquilo que séculos de confrontação e ameaças totalitárias (e outras) nunca lograram: isolar de facto as ilhas britânicas e colocá-las em rota de colisão com os restantes países europeus.
Permitam-me um passo mais no mesmo sentido da enormidade proferida por Lord Howard ao evocar a guerra das Maldivas: saberá ele que uma guerra contra a Espanha seria uma guerra contra o resto da União Europeia, ao abrigo do artigo 42º do Tratado da União Europeia (defesa mútua europeia)? E não deveríamos sobretudo recordar, neste dia no mínimo preocupante, que a integração europeia garantiu ao continente europeu, incluindo o Reino Unido, o maior período de paz vivido pelos europeus, provavelmente desde sempre?
Será a herança que temos para deixar aos nossos filhos, após tantos anos de paz, prosperidade e valores partilhados, esquecermos o passado negro que nos envergonha a todos, europeus (que no século XX vivemos duas guerras civis de uma inaudita brutalidade)?
Não convém, também, ignorar a aparente inconsistência da posição europeia sobre o assunto, ao tomar posição clara no conflito entre Reino Unido e Espanha pondo em causa o próprio direito da União, já que se vê mal como poderá o mercado interno acomodar um território excluído das suas regras, incluindo as da livre circulação de mercadorias, pessoas e serviços.
São inúmeros os pontos que separam o Reino Unido da União Europeia. A esperança de que as negociações assentem sobre bases sólidas e tranquilas esvai-se rapidamente. E se uma única das questões controvertidas terminar sem acordo, o mais certo é que não chegue a haver acordo nenhum; as posições estão extremadas, o sentimento de antagonismo cresce, tantos anos de integração e interesses comuns são esquecidos e banalizados.
Pior do que todas as previsões, se não houver sabedoria, bom senso e capacidade para evitar declarações extremadas como as que temos ouvido nos últimos dias, pode vir a ser o fosso provocado pelo “brexit” entre a Europa e as ilhas britânicas. Negociar é preciso, bom senso exige-se, a geografia não pode ser negada, a História, para o bem e para o mal, foi o que foi; é o que é.
Sem sentido de responsabilidade para com as futuras gerações, o continente e o Reino Unido poderão vir a ficar mais separados do que a União Europeia está da maior parte dos países e grupos de países do Mundo.
“Quem esquece os erros do passado, está condenado a repeti-los”, disse um dia o filósofo espanhol, criado nos Estados Unidos, George Santayana. Tenhamos fé na memória dos europeus.