Desde o Congresso do PSD, tão morno e tão maçador que foi qualificado de “anestésico”, correm as lamúrias sobre a “fragilidade” e o “isolamento” de Passos Coelho, de quem o povo laranja teria esperado que se reinventasse, mas que, para grande decepção dos adeptos, se apresentou ao conclave igualzinho a si mesmo. Ainda por cima, disse – e repetiu – com toda a clareza que o PSD não voltaria ao poder na semana seguinte, nem ainda no mês de Maio do ano em curso, o máximo de espera suportável. Que não: que a actual maioria, legal e legítima, se revelara mais sólida do que se julgara; que era impossível assinar-lhe uma longevidade certa e definida; e que, por conseguinte, o PSD teria pela frente uma longa, indeterminável fase de oposição. Passos, portanto, não tinha nada de verdadeiramente empolgante para oferecer. Ganhara as eleições de 2015, é certo; operara o milagre de conseguir que Portugal tivesse uma “saída limpa” do programa de assistência da Troika, é também certo; mas o seu tempo acabara. E só não teria acabado se ele tivesse demonstrado uma acrobática habilidade para se “reinventar” a si mesmo, o que infelizmente não se verificara. De Passos se poderia dizer que não aprendera nada, nem esquecera nada.
Não me tinha ocorrido a ideia de que as grandes qualidades de Pedro Passos Coelho, que estiveram na origem do seu sucesso político e governativo, só tivessem, afinal, validade cíclica. Julgava que o realismo, o pragmatismo, a exigência, a resiliência, a coragem, a força de carácter, a integridade política eram trunfos para todas as estações. Pelos vistos, não são. E não são certamente os atributos requeridos, necessários ou sequer desejáveis para um “novo ciclo político”. Quais serão eles?
Pesquei à linha nas declarações dos seus opositores. Desde logo, claro, capacidade afectiva e vocação sentimental. Capacidade para se condoer, de forma que seja bem visível e audível, com os pensionistas mais pobres, por exemplo. Depois, claro, um módico de “maleabilidade”, que no dicionário dos seus críticos dentro do PSD significa predisposição para começar por recapitular erros, e acabar num mea culpa; ou seja, renegar tudo o que fez dele o líder e candidato a primeiro-ministro mais votado nas eleições de Outubro de 2015. E significa ainda, no dicionário dos seus adversários mais ressabiados, “abertura” a um “diálogo” com António Costa que vá evoluindo para uma compreensão mútua que, por sua vez, acabe por desaguar numa colaboração afável, franca e prestimosa. Seria uma maneira elegante de o presidente do PSD romper o seu alegado isolamento. Quer dizer, uma maneira de os pequenos e os grandíssimos boys do PSD — os “mais magoados” e os “mais ansiosos” — não fazerem a travessia da oposição em regime de absoluta “abstinência”.
Para inaugurar tão virtuosa “abertura”, não basta declarar (como Passos declarou num surpreendente momento de fraqueza) — «Social-democracia sempre!». Não. É preciso mais. É preciso expurgar todo o seu discurso do mais ténue vestígio da danosa ideologia liberal ou neoliberal que, durante o seu mandato como primeiro-ministro, pespegou no Partido Social Democrata uma nódoa diabólica. E ainda não chega. José Eduardo Martins, um crítico que já ascendeu a herói pela extraordinária coragem de ter comparecido em Espinho, queixou-se no Diário de Notícias de que “No passado recente […] escasseou a sensibilidade social, foram muitos os momentos de deriva ideológica em que a matriz social-democrata foi esquecida.” Será que o aspirante a futuro presidente do PSD ignora que a social-democracia é cara demais para um país que Passos tirou da bancarrota, um feito que ele próprio reconhece no mesmo texto?!
Pouco importa: houve “deriva ideológica”, ponto. Como revela o jornalista Vítor Matos, “Não basta falar de desigualdades para se tornar mais social-democrata.” Passos que não venha agora com essa. É velha; está gasta. Em Espinho, Passos “não levou ao país nem ao partido nada de novo”. Não forneceu uma só pista que permitisse diferenciar o PSD “do que fez nas últimas legislativas”. Mais: nada disse “sobre aquilo que é hoje essencial para o centro-direita”; apresentou-se o mesmo Passos, “com o mesmo tom, a mesma estratégia, a mesma resiliência, a mesma frieza, a mesma teimosia”. Mais grave ainda: “Em tempo de afectos na política”, nem ao menos se emocionou ou teve “uma palavra de afecto para os pensionistas e Marcelo ganhou assim”. E Vítor Matos conclui muito logicamente: “Parece que não aprendeu a lição.” Qual lição? A de ter vencido as eleições com esta carrada de defeitos? Relapso e contumaz, Passos “manteve as ideias que trazia da campanha eleitoral”. Nada me parece mais acertado. Apesar de todo o foguetório e de todos os malabarismos para impressionar incautos, a verdade é que estamos perante “péssimas notícias” no horizonte económico-financeiro, considerando Graça Franco (4.4.16) que o que se perspectiva “é mau demais para continuar a fingir que não se passa nada”.
Alguém me explique por que haveria de mudar aquelas ideias. Passos apresentou-se em campanha com um programa de governo para o novo ciclo pós-Troika. Ganhou as eleições, mas o Parlamento recusou-o para primeiro-ministro. Deveria, por isso, deitar as suas ideias borda fora e improvisar um programa diferente pelo motivo de ter passado à oposição? A tática oposicionista, essa, suponho que seja diferente do estilo e modo de estar no poder. Mas o que em campanha era julgado bom e necessário para o País, transforma-se em mau e desnecessário só porque se transitou para a bancada do combate contra o governo ? E, já agora, “o que é hoje o essencial para o centro-direita”? Ser o mais social-democrata possível ? Ter um discurso idêntico ao do partido costista e adjacentes? Por outras palavras: competir com a esquerda radical para ver quem gasta ou promete gastar mais?! Como conclui muito acertadamente João Miguel Tavares (Público, 5.4.16), se a “geringonça”, por milagre, resultar, no que também eu não acredito, “o tempo será sempre de António Costa, e nunca dos sociais-democratas do PSD”.
Esta verdade, porém, não entra nas cabecinhas dos “mais magoados” e dos “mais ansiosos” (Vítor Matos), que pedem a auto-reinvenção de Passos, o exortam a ser mais social-democrata e lhe exigem “novidades”. Pedem-lhe, em suma, o poder de volta o mais rápido possível e a qualquer preço. Estou em crer que Passos não se deixará empurrar pela esquerda do partido para uma derrota anunciada. Sinal disso foi a promoção de Maria Luís. Tenho grande apreço pela ex-ministra. Apreço e simpatia: gosto de pessoas inteligentes, convictas, intrépidas, e dispenso expansões públicas de emoções e sentimentos. Embora não tenha a certeza de que fosse preciso um sinal tão forte, a roçar a provocação, o sinal confirma que Passos Coelho não faz a menor tenção de se reinventar.
E ainda bem. Porque se algo é preciso reinventar – e ele é o homem certo para isso – é a própria social-democracia. Porquê? Porque, historicamente, esta já venceu: o que começou a erguer sobre os escombros da Segunda Guerra enraizou-se, vingou. desenvolveu-se e generalizou-se. É hoje, no Ocidente europeu, um património civilizacional tanto da esquerda como da direita. O que falta para sair do impasse actual e arrombar portas que lhe permitam continuar a viver? Falta remover os obstáculos, fruto de ideologias e doutrinas obsoletas, que entravam o progresso do capitalismo.
Sim, do capitalismo. Porquê? Porque o capitalismo, assente na propriedade privada e na concorrência, é historicamente o regime que mais riqueza e prosperidade gerou até hoje, e que retirou centenas de milhões de pessoas da miséria extrema. E é também, em toda a História, o regime económico que mais liberdade, individual e colectiva, concede às sociedades. Num mundo globalizado e que já não dorme, a estatização da economia (e portanto da sociedade), as planificações económicas e os proteccionismos de outrora não são possíveis, nem desejáveis. A social-democracia de cariz keynesiano está esgotada. E a sua urgente reinvenção terá de provir, e só pode provir de um casamento harmonioso com o liberalismo económico. Não é uma contradição e ainda menos um paradoxo. Quem tem medo da palavra “liberal”?
Muito boa gente. Paulo Rangel, por exemplo, num artigo sobre “Mobilidade Social” (Público, 5.4.16), esmera-se a explicar o distinguo fundamental: “O PSD tem um ímpeto liberalizador – que não é o mesmo que um ímpeto liberal.” Deus nos livre! “Numa economia altamente estatizada [como a nossa, supõe-se], liberalizar não é naturalmente ser liberal.” Confesso que a subtileza da nuance me escapa. Muitos social-democratas estão erradamente convencidos de que a social-democracia de cariz keynesiano resolve os problemas da desigualdade e do Estado Social com mais doses de social-democracia keynesiana – ainda mais Estado, ainda mais impostos. Do meu ponto de vista, resolvem-se liberalizando-a, porque esses problemas radicam essencialmente na insuficiência de riqueza. Votei em Passos Coelho porque o achava talhado para padrinho de um casamento a meu ver feliz e necessário. Espero que ele não se reinvente. À sua volta, quase só vejo anões.