O Relatório Draghi do antigo Governador do BCE, encomendado por von der Leyen, tem como finalidade ser um programa económico para a próxima Comissão Europeia. O diagnóstico é que a UE está a passar por uma crise existencial, em termos geoestratégicos, e que ou acelera o crescimento económico ou está condenada a desaparecer (pelo menos em termos de relevância mundial). De facto, no contexto mundial, a UE tem uma boa situação social e de equidade, e a liderança da transição climática; mas nas últimas duas décadas e meia o crescimento do PIB desacelerou, devido ao fraco crescimento da produtividade. O gap do PIB entre a UE e os EUA agravou-se de 17% em 2002 para 30% em 2023, enquanto a China converge rapidamente para os níveis dos países desenvolvidos. Aponta como fontes desta estagnação o esgotamento do sistema de comércio livre multilateral, o encarecimento do gás russo e o esgotamento do “dividendo da paz”. Parecem-nos razões muito recentes, que não explicam a origem da desaceleração de duas décadas. Em nossa opinião há causas mais profundas como a desaceleração do progresso tecnológico, a deterioração da qualidade dos líderes e das políticas económicas, a paragem na exploração dos benefícios do Mercado Único, as crises financeira e pandémica, a que se acrescentam mais recentemente os conflitos geoestratégicos.
O Relatório sofre de um erro grave que é o de partir do pressuposto que todos os objetivos da UE desde o período marcante de Merkel, são não só igualmente realizáveis como se suportam mutuamente: elevar o nível de inclusão social, realizar a neutralidade carbónica, aumentar a segurança e relevância geoestratégica e ao mesmo tempo atingir elevadas taxas de crescimento económico. Tanto os políticos das recentes Comissões Europeias como o Relatório esquecem que há conflitos inerentes entre estes objetivos (trade-offs) e que há elevados custos económicos para efetuar a transição climática e digital. Ou seja, esses custos podem acarretar elevados sacrifícios no curto prazo, com reflexos na queda do crescimento do PIB. Estarão os cidadãos europeus dispostos a incorrer estes custos? Quanto e quais são? Algum político lhes explicou estes trade-offs? O Relatório também não o faz. Não acreditamos nas promessas de que fazer, por exemplo, a transição energética traz oportunidades de investimento (note-se o eufemismo) que gera rendimentos e crescimento do PIB espetaculares. Esta foi a grande ilusão que os meus professores universitários, sobretudo na minha “alma mater” da Universidade da Pennsylvania, me fizeram esquecer.
O Relatório acentua, e muito bem, que hoje a competitividade não diz tanto respeito a custos relativos do trabalho, mas mede-se pelos conhecimentos e pelas qualificações (skills) de um país ou região. Embora não nos possamos esquecer que os preços e qualidade de outros inputs como a energia ou as matérias-primas também contam, como no caso da Europa.
Uma das melhores recomendações e que não seria difícil de implementar, sem custos, mas grandes benefícios, seria reduzir, simplificar e racionalizar a regulamentação comunitária, enquanto se veria reduzir a fragmentação devido à regulação nacional. Basta citar que mais de 60% das empresas consideram a regulamentação um obstáculo ao investimento. Igualmente é necessário reformular a governação comunitária, muitas vezes paralisada por desentendimentos entre os 27 Estados Membros. Não existem ilusões de que não é possível grandes passos na integração, como já o Relatório Pisani para Macron o tinha acentuado. A política e as reformas devem ser graduais e realistas, e diria sobretudo pragmáticas.
O outro contributo bastante positivo são as propostas para reformar as políticas de Investigação e Desenvolvimento. Os EUA gastam 3.6% do PIB em I&D, enquanto a UE apenas 2.2%. O Estado gasta 1.4% e as empresas 0,8% do PIB na UE, enquanto nos EUA as empresas gastam 2.3% e o Estado 1.3%. Esta estrutura explica uma grande parte da diferença na eficiência da I&D e da capacidade de exploração comercial. De facto, a investigação feita pelas empresas responde melhor às oportunidades de mercado, e mais facilmente encontrará investimento para incorporar as patentes e inovações. Este fator é esquecido pelo Relatório. Mais ainda, a forte subida das despesas em I&D nos EUA, é em grande parte explicada pelas empresas norte-americanas desde meados dos anos 2000, apesar do governo ter baixado a sua percentagem.
Outro fator que explica o atraso no processo de inovação na UE é o capital de risco. Os investimentos em capital de risco na UE são apenas 20% dos financiamentos nos EUA, o que mostra o enorme atraso nas start-ups e inovação da Europa.
Mas o que o Relatório destaca é a baixa produtividade e eficácia da I&D financiada pela Comissão Europeia e por muitos governos nacionais. Existe uma grande dispersão de programas, sem qualquer controle de eficiência. Apesar do programa Horizonte Europe e Pathfinder, centralizados pela Comissão, já terem volumes de financiamento mais elevado, apenas dispõem de cerca de 350 milhões de Euros. Um exemplo a seguir é dado pela experiência da ARPA nos EUA (Adanced Research Programs Agency), responsável pela invenção da internet, GPS e aviões stealth (escapam ao radar), entre outros. Hoje esta agência desmembrou-se por grandes setores: defesa, saúde, energia e infraestruturas. Como o nome indica, o seu papel fundamental é gerir e atribuir os fundos assim como coordenar e acompanhar os programas de investigação. Em conjunto, estas agências têm um orçamento de 6 mil milhões de USD, quase 20 vezes mais do que a UE!
Relacionada com esta, está a recomendação que diz respeito ao upgrading das qualificações da mão-de-obra e a produção de cientistas. Muitos dos programas de treino e qualificação da mão-de-obra financiados por fundos europeus e nacionais têm uma eficácia duvidosa e não estão alinhados com as necessidades das empresas. O desperdício é gritante.
O Relatório é omisso sobre o problema da imigração. Vários estudos feitos para os EUA mostram que a imigração tem um contributo positivo para o crescimento económico, porém existem problemas sociais de integração com as populações locais e de reação dos nacionais, que não podem ser ignorados. É ilustrativo olhar para o gráfico da página 28 do Relatório que identifica os setores com maiores défices de qualificação de mão-de-obra: por um lado, défices elevados em pessoal para o setor da hospitalidade e confeção de refeições, e construção, que necessitam de mão-de-obra semiqualificada. Por outro lado, são necessários técnicos de informação e tecnologia. A imigração poderia contribuir para reduzir estes défices.
Mas é necessário aumentar o grau de qualificação da mão-de-obra em toda a UE. Ensino secundário superior e universitário de qualidade são fundamentais, Apesar destes terem na Europa uma certa qualidade, existe uma proporção elevada de instituições que não satisfazem critérios pedagógicos fundamentais. E a Inteligência Artificial poderá acentuar estes problemas numa perspetiva de concorrência com os EUA e China. A UE produz 850 graduados em ciência e tecnologia por 1 milhão de habitantes por ano, comparado com 1 100 nos EUA. A UE tem apenas 3 instituições nas 50 top instituições de investigação no mundo, enquanto a China tem 15! Não temos universidades de topo na UE. A iniciativa de Durão Barroso de constituir o MIT da Europa nunca saiu do papel, pois não se cria por decreto. Só uma política de atração dos doutorados de topo e de retenção de cientistas o pode conseguir. O que exige estruturas e condições de investigação e laboratórios de excelência. O Relatório propõe a criação de cátedras “Europeias” com dotações adequadas.
Olhemos agora para a política industrial, de comércio externo e de energia.
O Relatório chama a tenção para o que podemos chamar de paradoxo geoestratégico euro-chinês. Os dirigentes chineses desde cedo viram nas políticas ambientais da UE (transição energética) uma forma de aumentarem o seu poder económico e diminuírem o da UE. Poucos políticos ainda se aperceberam deste Paradoxo que ficará na história como um dos maiores erros de estratégia geopolítica. A UE estabelece metas ambiciosas para aumentar o peso das renováveis. Mas quem vai desenvolver a tecnologia e dominar a produção: os chineses através da sua indústria de painéis solares. A UE estabelece metas ambiciosas para eletrificar os automóveis: as empresas chinesas já praticamente substituíram os produtores europeus em Veículos Elétricos na China, e começam a invadir os mercados europeu e norte americano com veículos elétricos chineses a preços imbatíveis e sem preocupações ambientais na sua produção, dizimando a indústria automóvel destes países. Mais ainda, são o maior produtor de baterias de lítio e dominam grande parte dos materiais necessários para a produção das baterias. Ou seja, a UE estabelece metas de descarbonização, aproveitadas pela China para desenvolver a sua indústria para satisfazer estes objetivos, enquanto provoca uma aceleração na de-industrialização europeia. Draghi propõe uma nova política industrial e barreiras aduaneiras, como os EUA o estão a fazer. Mas já temos os PM da Hungria e da Espanha a oporem-se! A lição que os políticos deveriam tirar é que não se devem fixar objetivos superambiciosos sem se estabelecer as políticas e os programas para lá chegar e formar consensos com os stakeholders.
As recomendações no domínio da política energética são claramente insuficientes. O objetivo é reduzir os custos energéticos: a UE paga o gás natural a um preço 4 a 5 vezes superior ao dos EUA, e a eletricidade a 2 a 3 vezes mais, e a China continua a utilizar a energia fóssil em elevados níveis, sem sobrecustos de taxas de carbono. As indústrias intensivas em energia da UE estão ameaçadas de morte. A energia de base solar tem hoje um custo competitivo. Mas o problema com a solar e a eólica é que são energias intermitentes, e são necessários fornecimentos de base que assegurem a continuidade. Esta continuidade tem sido em grande parte assegurada na Alemanha e em Portugal, por exemplo, através da importação de gás liquefeito, o que leva àqueles preços. Outras fontes são o nuclear, que não tem emissões de CO2. O Relatório ignora completamente o nuclear, talvez por pressões políticas externas! De facto, os sistemas elétricos deveriam ser planeados com o objetivo de fornecer ao utilizador final a eletricidade a custo mínimo dada uma restrição de emissões realista e gradualmente exigente, utilizando todas as tecnologias eficientes. Subir as taxas de carbono e introduzir os ajustamentos de fronteira fazendo subir os custos de matérias-primas e produtos semi-manufaturados só vai agravar o problema da competitividade da indústria.
E daqui somos levados à Política industrial. Esta é claramente uma questão da decouplagem entre o Ocidente e a China (já tratamos deste assunto, sobretudo analisando as políticas dos EUA, que se podem comparar com o nosso ensaio. Para aumentar a eficácia desta, o Relatório advoga maior harmonização entre os programas nacionais, maior coordenação entre o nível comunitário e nacional dos instrumentos financeiros e coordenação das políticas de subsídios às empresas e consumidores nacionais com as políticas de comércio externo. A política industrial deve assentar sobre o aprofundamento do Mercado Único, como o Relatório Leta já tinha defendido extensivamente. No entanto, Draghi já veio esclarecer em diversas intervenções que não é a favor de subsidiar “campeões nacionais”, mas apoiar setores estratégicos para a defesa e segurança, ou ter políticas horizontais. A política de comércio externo deve estar alinhada com a política industrial, facilitando a reconstituição das cadeias de produção, mantendo mercados abertos com os países alinhados com a UE e que lhe fornecem tecnologia, mas ao mesmo tempo proteger do dumping, restabelendo o level playing field. Também a política de investimento direto estrangeiro dos investidores externos assim como das empresas europeias no Exterior, deve obedecer à política industrial e de segurança, articulando o nível comunitário com o nacional.
Outra dimensão é a utilização da elevada capacidade de produção das indústrias militares para o reforço da segurança da UE, nomeadamente pelo aumento dos orçamentos para defesa dos países, maior integração das empresas e mais intensidade de I&D.
Também não concordamos com uma política de concorrência mais laxista proposta pelo Relatório já por muitos advogada dos campeões europeus. Estes devem surgir endogenamente pela sua superioridade tecnológica, design e marketing, e não de decisões administrativas de burocratas. O que contradiz a frase do Relatório “The evidence is overwhelming that competition stimulates productivity, investment and innovation” (página 9).
Uma importante recomendação do Relatório, de propor o financiamento de um grande programa para a competitividade da Europa que acarretaria a emissão de dívida comum pela UE de cerca de 800 mil milhões de Euros por ano, já foi prematuramente reprovada pelos alemães.
Outros relatórios, como o de Leta sobre o aprofundamento do Mercado Único, e o da Comissão Europeia sobre competitividade, completam um vasto conjunto de recomendações sobre as quais é necessário refletir. Contudo, relembramos a observação que fizemos acima de que existem trade-offs temporais e entre programas que não se podem ignorar. E que os políticos devem deixar de criar ilusões, pois os protestos sociais e os resultados eleitorais não vão deixar de os castigar.
Irá von der Leyen usar de facto este relatório como blueprint para as suas políticas, com as devidas adequações?
P.S. Uma curiosidade geoestratégica importante é a questão da crise demográfica até 2100 (página 18 do Relatório, baseada nas Projeções das Nações Unidas). Enquanto nos EUA a população continuará a crescer, passando de 345 milhões em 2024 para 421milhões em 2100, a UE terá uma contração de 465 milhões em 2024 para 419 milhões em 2100. E a China, vai ter provavelmente um colapso de 1 419 milhões em 2024 para quase metade: 633 milhões em 2100. A India continuará a ser o país mais populoso, com 1 505 milhões de habitantes.