Há dias tive o gosto de ler neste jornal o excelente artigo do Nuno Gonçalo Poças sobre o “nacional-porreirismo”. É um texto de alcance bem maior do que possa parecer à primeira vista. Não trata apenas dos crimes perpetrados por criminosos que se entendeu desculpar. É sobre toda a forma como encaramos a responsabilidade em Portugal. Independentemente do nível do pecado ou da gravidade ética, moral ou criminal dos factos, somos todos “bons rapazes”, goodfellas na melhor aceção de Scorsese.

Responsabilidade é um termo de difícil gestão jurídica, confundindo-se com culpa, e poucas vezes avaliado na sua dimensão mais relevante. Aquela que em língua inglesa se denomina de accountability. Quem é responsável deve prestar contas pelo que fez.

Há umas semanas circulava nos telemóveis um vídeo em que um deputado português no Parlamento Europeu tinha sido filmado com alterações neurológicas aparentes, manifestadas essencialmente por desequilíbrio na marcha e sugestão de sonolência, facilmente imputáveis a excesso de consumo de bebidas com álcool ou a qualquer outra substância psicotrópica indutora de perturbação da consciência. O visado não estava a incomodar ninguém e a tristíssima figura exibida em rua aberta ao público apenas a ele o poderia lesar fisicamente ou na imagem. Alguém, certamente sem intenção piedosa, filmou e publicou o espetáculo de um bêbado que não teria outra importância que não fosse a de ser um bêbado conhecido de muita gente, diz-se, com aspirações a líder partidário e eventual candidato a Primeiro-Ministro. Poucos se importaram com o facto de ser mais um qualquer homem ébrio, já que a bebedeira é sempre desculpável numa sociedade que protege o álcool e vários vieram em defesa da pessoa célebre, cuja intimidade, apesar de ter sido exibida na praça pública, foi devassada.

A vítima do indecoro, apesar da falta de vergonha ter sido por si apresentada aos olhos de quem passava, veio confirmar que era ele o ator daquela cena e, sem mais, assumiu a sua imperfeição. Não fugiu à responsabilidade, quem quiser que o julgue. Fez bem. Pior estarão os autores do vídeo e aqueles que o entenderam divulgar a cobro de uma anonimidade pusilânime, irresponsáveis de um ato que nos mostrou a fragilidade de um ser humano, imperfeito, certamente divulgado num momento que não será inocente. Não aplaudo bebedeiras que também já tive, nem devassas a que qualquer um pode ser sujeito. Congratulo-me com a frontalidade com que o embriagado assumiu o seu erro, o de não ter chamado um táxi, já que descontrolos todos podemos ter. Foi coisa pouca, mas exemplifica a facilidade com que neste País estamos dispostos a perdoar a bebedeira e, felizmente, a proteger a individualidade. Neste caso, não houve vítimas terceiras e cada qual que julgue o que entender julgar. Guardemos a lição de que tudo o que fazemos pode ser visto por outros. Hoje, o que um vê facilmente se torna gáudio de multidão. Somos accountable, cada vez mais.

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Também por estes tempos, não interessa a casualidade temporal, houve um trágico atropelamento mortal de um trabalhador numa autoestrada. O dramatismo da perda de vida humana foi agravado porque a vítima foi morta pela viatura onde seguia um ministro. Logo, finalmente, se descobriu que os membros do Governo, posso dizer dos órgãos de soberania, andam em excesso de velocidade. Há mais pessoas que o fazem, cidadãos comuns, e por isso são punidas. Punição que se pretende ser dissuasora de repetir o erro. Muito se discutiu se sua excelência deveria ter saído do carro para observar os restos mortais do trabalhador colhido ou se deveria ter mandado alguém às cerimónias fúnebres do falecido. Não me parece que sejam estas as matérias mais relevantes. O que verdadeiramente interessa é perceber que o responsável do acidente, não necessariamente o único culpado, é o motorista da viatura oficial, um trabalhador como o atropelado, que poderia não estar a cumprir o código da estrada, exatamente o código cujo cumprimento devia ser exigido pelo ministro transportado. Ora, há um problema de accountability que não pode ser ignorado pelo membro do Governo que seguia na viatura. Podemos andar a discutir o valor desculpabilizante de levar as luzes azuis acesas ou a imprudência da vítima que atravessou uma autoestrada, sendo certo que um estrago de pancada a 120 km/h não será muito diferente de um embate sofrido a 200 km/h, mas a verdade significativa é que a viatura do ministro poderia ir em excesso de velocidade e isso é, como se demonstrou, perigoso. Logo aqui sublinho a relevância de saber a verdade sobre a velocidade a que seguia o carro que transportava o ministro, para o apuramento dos factos e o estabelecimento de uma cadeia de causas que possa vir a permitir profilaxia de acidentes semelhantes. É deprimente se não a sabem calcular, vergonhoso se a conhecem e não divulgam. Tanto medo de prestar contas, a falta de accountability, não deve deixar ninguém indiferente.

Dias depois, outro ministro, outro carro, o mesmo excesso de velocidade. Sua excelência não tinha reparado que ia depressa demais. Nem se lembrou de recomendar prudência depois do acidente dos dias anteriores. O que aqui interessa é, mais uma vez, o prevaricar sistemático, não fazer mal porque é comum, tão comum como andar alcoolizado na rua, e a forma simplista como não se tiram consequências dos atos. Mais que não seja, para não repetir.

Muitos dos que agora se mostram admirados com a imprudência do ministro que outra coisa não deveria ter feito que não fosse pedir desculpa à nação e airosamente sair do cargo, reconhecendo que não fez cumprir o código que jurou defender, estiveram em governos e andaram mais depressa do que deviam. Também já andei escabrosamente em excesso de velocidade. Em valores que não tentaria com a minha viatura pessoal. A coberto das luzes azuis e de um sentido de urgência ao serviço da causa pública de que agora me interrogo se valeu a pena. Logo eu, tão motivado que estava na defesa da saúde pública, no uso do cinto e na prevenção de acidentes. Devo agora uma desculpa a todos que defraudei, incluindo aos meus fidelíssimos motoristas de quem fiquei amigo, e ainda bem que nunca tivemos um acidente. A culpa seria deles, a responsabilidade seria minha. Infelizmente, só a primeira acabaria juridicamente punida. Da segunda acreditem que não fugiria, mas a demissão, para quem está num governo, é muitas vezes mais prémio do que outra coisa. Nunca mais voltarei a ser governante e, talvez por isso, não tendo ambições políticas, posso agora escrever o que escrevo, mas pelo menos que haja alguma lição a tirar disto tudo, seja ela a de que não é aconselhável atravessar autoestradas a pé ou de que um governante não se deve esconder atrás da responsabilidade do motorista que o conduz para andar a velocidades estonteantes, a cumprir agendas com distâncias incomportáveis nos tempos previstos. Que a responsabilidade sirva, como no caso do excesso de álcool, para que o disparate, estou a ser brando, não se repita.

E como vamos num crescendo de gravidade, terminamos na recentíssima morte de um militar que foi herói para uns e canalha para outros. Sou dos que o acham mais canalha do que qualquer outra coisa. Um desprezível assassino, um cobardolas que mandava matar. Mas o que aqui me traz a perder tempo com um biltre que não fará mais do que uma nota de rodapé na história dos revolucionários de capotilha lusos, é a ausência de responsabilidade com que o admiram os que logo vieram a desculpar os disparates, volto a ser brando, cometidos na sequência lógica do que seria expetável num portador de distúrbio de personalidade, ainda que imputável pelos seus atos. Neste último caso, do homicida desculpabilizado, entramos no extremo da incapacidade de exigir contas a quem comete um qualquer ato. Não é só a ausência ou brandura das penas o que nos deve preocupar. É a inexistência do reconhecimento de que há contas a prestar e que essa contas nunca foram prestadas, ainda para mais com cobertura da Assembleia, a da República, que nos deveria proteger.

Para mim, desculpem-me a simplicidade de modesto professor de governança clínica e segurança de doentes, o que mais me impressiona em Portugal é a forma como se olha para a accountability e não se percebe que a avaliação da mesma, independentemente da eventual punição resultante dos factos, certamente proporcional à dimensão da falta cometida, é o caminho mais eficaz para a melhoria de todo o sistema social, não só do judicial, e para a prevenção da repetição. A desculpabilização não promove a melhoria de comportamentos e um País que se entretém em desculpas nunca deixará de ser medíocre. “Porreiro, pá”!

P.S.: Mais uma estupidez insondável. Então não é que o certificado digital de vacinação, cuja validade imunitária ainda não está determinada, tem prazo de validade. Há poucos dias, pedi um. Duas semanas depois recebi um SMS a dizer que o documento tinha expirado e precisava de pedir outro, mesmo que sendo para a vacina que recebi em dezembro de 2020 e janeiro de 2021 sem a ter, obviamente, repetido. Quando param as parvoíces?