Conhecido o resultado das eleições do passado dia 10 de março e com primeiro-ministro indigitado, já poderá ser oportuno escrever um comentário.

O PSD, em coligação com o CDS e o PPM, embora este último tenha sido lastro em vez de impulso, conseguiu o resultado suficiente para ter uma quase vitória que, afinal, poderá ser uma quase derrota. Será sempre difícil, na ausência de estudos dirigidos para responder a essa questão, conhecer as razões mais frequentes para que um eleitor tenha escolhido A ou B. Todavia, no caso do PSD não estou convencido, é uma perceção face à leitura demográfica e geográfica dos resultados, de que a “despassificação” levada a cabo pelo Dr. Luís Montenegro e a sua entourage tenha sido a melhor escolha, como poderá não ter sido boa a assunção da necessidade de “reconciliação” com os idosos. O anúncio da vontade de reconciliar o PSD com os mais velhos, correspondeu a aceitar o discurso de que o Dr. Passos Coelho tinha retirado direitos aos mais velhos e de que o seu governo, que orgulhosamente integrei, terá ido para lá da Tróika. Ainda pior, o discurso de suposta reconciliação e pedido de desculpa pelas “maldades” executadas pela coligação PSD-CDS, entre 2011 e 2015, fez esquecer que o resgate aconteceu por erros e azares do Engenheiro José Sócrates e que, se não tivesse havido a governação corajosa do Dr. Passos Coelho, teríamos passado pelas agruras da Grécia. Foi triste ter assistido ao revisionismo histórico a partir do próprio PSD, aceitando e chancelando as mentiras que a esquerda soube construir a partir de 2015, colaborando com a ablução de responsabilidades sobre a crise de 2011 que o PS encetou com a geringonça e consolidou com a colaboração, passiva e agora ativa, do PSD.

O Dr. Montenegro fez campanha, como muitos comentadores disseram e procuraram demonstrar, a fugir da rejeição. Dessa forma, abriu espaço para que à sua direita tivesse havido quem explorasse, com proveito, todas as perceções existentes sobre questões securitárias, deslocações populacionais, ameaças culturais e de desconstrução social, de que os exageros woke e as confusões entre sexo e géneros inventados são exemplos. Conclusão, o Chega ganhou e a AD, tal como a esquerda, perdeu votos. Tal como os perdeu pela incompetência, não tem outro nome, de terem insistido na sigla AD quando já se sabia que havia um ADN. Não havia necessidade.

Durante e após a campanha foi mais o tempo que se perdeu a discutir governabilidade do que propostas para a governação. Houve um vazio, a que me refiro em escrito elaborado antes das eleições e que será publicado na primeira semana de abril, um vazio que o próximo governo terá de encher. No caso da saúde, pese embora a existência de algumas propostas interessantes no seu programa, do PSD só ouvimos falar de um plano de emergência que, em boa verdade, não sabemos em pormenor o que será, como vai ser executado e o que poderemos esperar dele. Consultas no privado para suprir o que o SNS não consegue assegurar, parece-me excelente ideia. Resta saber quantas serão, por que preço, com que controlo de qualidade, com que continuidade e quais os apoios complementares, diagnósticos e não só, que lhes estarão associadas? Reorganizar a rede de urgências? Já se fizeram várias revisões. Eu fiz uma antes de terminar a minha efémera carreira política. Há pessoal para responder melhor às necessidades crescentes? Voucher para consultas? Parece uma repetição do primeiro item. Nesta fase, com conhecimento de causa, o mais importante é responder às falhas de obtenção de exames de imagem em tempo útil. Isto, como sugestão para começar por algum lado. E, convenhamos, ter reiteradamente prometido médico de família para todos em 2025 lembra slogan socialista e, sendo “socialista”, de execução incerta para não dizer impossível.

Vitória? Sim, sem dúvida. Esqueçamos o “quase”. Mesmo que por pequena diferença, o PSD ganhou e o Dr. Luís Montenegro tem o direito e a obrigação de formar e dirigir o governo. Não se pode repetir o cenário de 2015. Os eleitores têm o direito de ser governados no quadro antecipado durante a campanha e não por coligações ad hoc. Dito isto, o próximo governo não vai ter tempo para desenhar uma estratégia para a saúde, se ainda não a tem, e aplicá-la. Vai procurar resolver casos e transformar a perceção de falência sistémica numa sensação de normalidade operacional no SNS. Em menos de 1 ano é tarefa quase impraticável porque qualquer reforma digna desse nome precisará de mais do que uma legislatura. Terá de haver visão a longo prazo, coisa que ninguém quer ter. Mas é o que é. Com 78+2 deputados do total de 216, só se fará o que for possível e num período que será breve na escala do tempo necessário para as transformações em saúde púbica.

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No dia em que escrevo este texto, 25 de março de 2024, não faço a mínima ideia de quem será o próximo ministro da saúde. O Dr. Montenegro certamente terá já o seu “escolhido(a)” e os dois saberão ao que vão. Deseja-se. Deverá ser alguém com mais do que uma vaga ideia do que vai fazer, como vai fazer, de como se faz e com quem se faz. Mas enquanto não conhecemos o (a) “trouxa” ou “patriota”, eventualmente o(a), “deslumbrado” ou “convencido”, há duas notas que se impõem.

Existe sempre um debate sobre se o ministro da saúde deve ser alguém do setor ou de fora do setor. Chegar de “fora”, com a perspetiva de utente e não a de um trabalhador da saúde, tem a vantagem de poder ser uma pessoa ainda por capturar pelo sistema. Mas um ministro desconhecedor da problemática da saúde precisa de estar bem rodeado. Refira-se que para ser conhecedor da saúde não basta ser profissional de saúde, ter dirigido uma qualquer instituição prestadora de cuidados, ter sido dirigente de uma organização profissional, administrador de uma seguradora, ter dado aulas sobre gestão ou economia, ser portador de um mestrado ou doutoramento, dar uns palpites nos media ou ter sido alcandorado a perito pela comunicação social que anda sempre à procura de líderes de opinião que possam exibir num qualquer programa de rádio ou televisão. Não. Saber de saúde pode ser tudo o que atrás escrevi, pode não ser nada daquilo, mas é, acima de tudo, ter vivido o sangue, suor e lágrimas de cada dia passado a cuidar de pessoas, conhecer as privações e as faltas, ter sentido o cheiro, as cores e os sons da doença, para poder apreciar a Saúde e valorizar o que significa não a ter. Em bom rigor, certo do meu exagero, no momento que vivemos em que as perceções estão bem piores do que a realidade, apesar da realidade ser pior do que se imagina em alguns casos, pode haver “maqueiros” * nos hospitais que dariam excelentes ministros. Excedi-me, reconheço. Mas espero que as pessoas tenham percebido o meu ponto. É preciso ter vivido, presenciado, assistido, para se perceber tudo o que é a Saúde, o que não vem nos livros, nem passa na rádio ou na televisão. E saber escutar, não chega ouvir, ver e procurar entender.

Por outro lado, se atentarmos na estrutura administrativa que o governo do PS nos deixa, o ministro da saúde e os seus secretários de estado serão pouco relevantes. O eixo da governação foi transferido para a direção executiva do SNS. O governo, se souber e for capaz, tentará definir políticas. Mas o essencial do controlo estará na direção executiva. Este modelo de cariz mais britânico, com virtudes e defeitos que já mencionei noutros textos, terá maior esperança de vida se não for, como tem sido, um instrumento de propaganda do partido no poder e passar a ser um agente executor de políticas. Eu teria preferido um modelo diferente, baseado na reforma da ACSS, mas agora é o que temos e não será recomendável tentar substituir no imediato a sua estrutura e orgânica. O caos arruma-se, embora isso gaste energia, não se substitui por ainda maior entropia. Todavia, será urgente mudar as pessoas que atualmente estão na direção de algumas das agências do ministério da saúde, começando pela direção executiva, em particular aquelas que chegaram aos cargos por nomeação política, sem qualquer processo de concurso e sem competência prévia demonstrada ou conhecida. Por outros, herdados de longos percursos na administração pública, pessoas de competência firmada e reconhecida, só nos resta rezar para que queiram continuar a servir o País.

A minha formação médica obriga-me a procurar definições claras, quando possível, para ajustar as soluções adequadas ao problema identificado. Nem sempre é possível, definições e soluções, admito. Mas fico um pouco confuso, para não dizer enervado, quando oiço e leio sobre a necessidade de que o próximo governo seja de “combate” ou “político”. Na saúde, o combate é diário, em cada hora. E político é a palavra que tem de caracterizar a governação. Mas se, por oposição a tecnocrático, seja isso efetivo, eficiente e seguro, de “combate” e “político” quiser dizer ignorante, demagógico, incompetente, sem visão ou sem convicções, mais valia termos ficado com o Dr. António Costa que, mais mal que bem, sempre nos dava alguma estabilidade.

O panorama partidário português está cheio de equívocos. Começam nos nomes das agremiações a que se chama partidos. Melhores do que montanha e planície, girondinos ou jacobinos, mas com enganos persistentes. O Chega, inteligentemente nomeado como se fosse um analgésico, não transporta no nome nada que o identifique com uma marca de pensamento. Estamos fartos e juntem-se a nós, os enfartados deste Portugal. O PSD nunca deveria ter deixado de ser PPD. Já o escrevi antes. O PS, social-democrata, copiou o socialismo dos franceses e italianos, mas já nem há repúblicas socialistas que se prezem. Socialista, diga-se, era comunista. A IL, não tem iniciativa e tende a ser mais libertária do que liberal, confundindo-se amiúde com a esquerda que devia combater. O PAN é uma espécie de união zoófila. O Livre é um conjunto de marxistas arrependidos que se quer fazer passar por liberal. Salvam-se, temos de ser justos, os comunistas do PCP que, mesmo assim, não deixam de se disfarçar de CDU e a aglomeração trotskista-maoista-marxista-leninista-estalinista-spartakista que se assume como Bloco, embora esfarelado, de Esquerda. É o que há. Quando se ouviu que o tempo já não seria de taticismos, só se vê tática e nada de estratégia. Quando a política parlamentar deveria ser praticada, como os resultados impuseram, em torno de consensos e soluções negociadas só se discute a durabilidade do governo e quem será o primeiro a derrubar o executivo. Quando precisamos de health in all policies, vamos ter politics muito pouco próprias para cardíacos. Vivemos e vamos continuar a viver no meio de equívocos, na confusão que há de aproveitar a poucos e prejudicar muitos.

Há dias lembrei-me desta citação que encontrei num livro do Prof. Fernando Rosas (1). Espelha bem o que vamos ouvindo na grandiloquência das declarações dos políticos. Cito, “…temos uma doutrina e somos uma força. Como força compete-nos governar […]; como adeptos duma doutrina importa-nos ser intransigentes na defesa e na realização dos princípios que a constituem. Nestas circunstâncias não há acordos, nem transições, nem transigências possíveis.” Deve ter sido com esta inspiração que já se anunciam moções de rejeição de um governo que não se conhece, há quem desenhe linhas verdes cipriotas** ou paralelos 38 e se ameaça com votos contra um orçamento de estado que ainda não foi elaborado. Sábia antevisão do autor da citação, António de Oliveira Salazar, em 1932.

* Figuras de outros tempos, em que as funções tinham nomes que todos entendiam, mas que já não existem. Mas continua a haver quem empurre macas. E fazem falta. As macas e quem as empurre.
** Confesso que já me irritam as linhas vermelhas e há que dar oportunidade ao verde.

(1) in Fernando Rosas, Salazar e o Poder: A Arte de Saber Durar, Tinta da China, 2012.