1 Este voto pode certamente parecer peculiar quando assistimos por todo o lado a uma crescente guerra irredentista entre tribalismos rivais. Mas é em parte por isso mesmo que gostaria de exprimir um voto antiquado a favor de um pluralismo tranquilo — que tenho gosto em associar a uma aristocrática democracia das maneiras.
O conceito de ‘aristocrática democracia das maneiras’ é certamente estranho às culturas políticas autoritárias e revolucionárias, da chamada esquerda ou da chamada direita — que em tudo descobrem guerras irredentistas entre tribos, sistemas ou regimes rivais. Mas, de certa forma por isso mesmo, é um conceito crucial nas culturas políticas liberais não-revolucionárias e também não-rebeldes — em rigor, também não-militantes.
2 Edmund Burke (1729-1797) — um parlamentar liberal britânico que apoiou os colonos americanos em 1776, liderou a impugnação do Governador da Índia na Câmara dos Comuns [depois recusada na Câmara dos Lordes] e a seguir condenou a revolução francesa de 1789 — defendeu que as maneiras são mais importantes do que as leis. As maneiras a que se referia eram maneiras aristocráticas, no sentido britânico do termo, mais tarde associadas à chamada austera era Vitoriana.
Essas maneiras aristocráticas exigiam em primeiro lugar um sentido pessoal de honra, de auto-controlo e de dever para com os outros — e condenavam enfaticamente como sinais de vulgaridade não-aristocrática qualquer sentimento de arrogância ou má-criação para com os outros (a começar por falar alto em locais públicos e, hoje em dia, estacionar em segunda fila).
Eram maneiras ou virtudes aristocráticas, na medida em que recusavam o abaixamento dos padrões de comportamento, ainda que esse abaixamento pudesse ser reclamado, ou praticado, pelas ‘massas’ — ou, mais exactamente, por agitadores revolucionários falando em nome do ‘povo’ (hoje talvez pudéssemos dizer pelas ‘redes sociais’). Mas eram também inteiramente democráticas porque eram acessíveis a todos, independentemente da origem social. Ficaram por isso conhecidas como virtudes de ‘gentlemanship’, virtudes de carácter e não de origem social.
E eram democráticas também num adicional sentido crucial. Burke argumentou que “todas as sociedades precisam de uma força de controlo sobre os seus apetites e desejos. Quanto menos essa força vier de dentro, mais terá de vir de fora.” Por outras palavras, as virtudes do auto-controlo aristocrático eram garantias espontâneas e civis contra o abuso do poder político estatal e/ou contra as intemperadas paixões revolucionárias e contra-revolucionárias.
3 Na verdade, aquelas virtudes aristocráticas foram curiosamente assumidas pela sociedade civil britânica, inclusivamente de forma muito enfática pelos movimentos trabalhistas originais, com forte influência cristã — que acusaram a aristocracia tory (conservadora) de não ser fiel às virtudes aristocráticos das boas maneiras e do sentido de dever para com os outros, sobretudo para com os mais desfavorecidos.
Mas não havia aqui, deve ser enfaticamente sublinhado, qualquer hostilidade revolucionária contra o que no continente foi chamado de ‘capitalismo’, nem sequer contra o que no continente se chama “a direita” [“direita” e “esquerda”, são aliás termos raramente usados no debate político britânico, talvez apenas para referir movimentos radicais sem expressão nem respeitabilidade parlamentar]. Também nunca houve qualquer hostilidade trabalhista contra o sistema parlamentar nem contra a Monarquia constitucional— sobre os quais trabalhistas, liberais e conservadores sempre competiram e ainda hoje competem entre si como melhores defensores [com a episódica excepção Trabalhista do sr. Corbyn, que não cantava o hino nacional ‘God Save the Queen’, e foi entretanto democraticamente sucedido pelo moderado Sir Keir Starmer].
4 Inúmeros distintos historiadores identificaram esta aristocrática democracia das maneiras como um dos elementos cruciais para explicar o “mistério britânico”: o de ter feito, por vezes antecipado, todas as revoluções da era moderna, sem recurso à Revolução. A mais recente revolução britânica, deve ser recordado, teve lugar em 1688 — e basicamente visou restaurar a democracia parlamentar e, por essa via, tornar desnecessárias ulteriores revoluções.
Thomas Macaulay (1800-1859) é sem dúvida uma referência crucial, tal como George Macaulay Trevelyan (1876-1962). Mas talvez a distinta historiadora norte-americana Gertrude Himmelfarb (1922-2019) — com quem tive o privilégio de privar e por quem tive o privilégio de ser educado — nos tenha fornecido a mais abrangente visão retrospectiva sobre o mistério britânico não-revolucionário e sobre o contributo decisivo da aristocrática democracia das maneiras, emergindo espontaneamente da sociedade civil. Também o austro-britâncio [Sir] Karl Popper (1902-1994) e o germano-britânico [Lord] Ralf Dahrendorf (1929-2009) [por ambos também e sobretudo tive o privilégio de ser educado] sublinharam enfaticamente o papel das maneiras da ‘gentlemanship’ na cultura política reformista e não-revolucionária dos povos de língua inglesa.
5 Um crucial detalhe deve aqui ser acrescentado, sobretudo na era tribal que vivemos: nenhum dos autores que sublinharam a especificidade não-revolucionária britânica alguma vez a associou a especificidades étnicas ou raciais. [Himmelfarb, Popper e Dahrendorf, a propósito, não eram de origem britânica, todos de certa forma imigrantes). Pelo contrário, todos sublinharam o cosmopolitismo do comércio internacional britânico e, sobretudo, o enraizamento da sua cultura política liberal na herança europeia e ocidental fundada em Atenas, Roma e Jerusalém.
Tratava-se, por outras palavras, de uma especificidade cultural e não étnica. E, ainda por cima, essa especificidade cultural não era sequer britânica. Ela tinha as suas raizes na herança cultural europeia e ocidental, fundada em Atenas, Roma e Jerusalém. O que talvez fosse especificamente britânico, sobretudo na época moderna das revoluções e contra-revoluções continentais, era o sentido de preservação reformista de um legado europeu ancestral.
6 Uma das cruciais sedes dessa herança cultural residia nas Universidades, sobretudo nas ancestrais Oxford e Cambridge [que sempre se referem entre si, sem se nomearem, como ‘the other place’). E estas, por sua vez, tinham horror em reclamar-se como inovadoras: ’Reform? Reform? Aren’t things bad enough already?’ foi a consagrada expressão do director do ancestral All Souls College quando lhe disseram que o reitor de Oxford o convocava para uma reunião sobre reformas centralmente desenhadas.
Olhares radicais descrevem hoje aquela resposta como expressão de imobilismo reaccionário. Mas tratava-se, pelo contrário, de um tranquilo entendimento da Universidade como lugar de herança tranquila de um legado ancestral, herdado de Atenas, Roma e Jerusalém. Este legado poderia e deveria ser gradualmente adaptado a novas circunstâncias, mas não deveria ser centralmente re-desenhado com base em planos centrais inspirados no racionalismo dedutivo continental.
Paradoxalmente, as universidades ocidentais, sobretudo britânicas e norte-americanas, são hoje palco de tribalismos inovadores rivais. De um lado, assistimos ao radicalismo fundamentalista, auto-designado “woke”, que condena o Ocidente e pretende “cancelar” o discurso livre de todos os que não concordam com a sua ortodoxia. Por outro lado, vemos emergir uma reacção militante rival que pretende contrapor uma ortodoxia rival, em vez de simplesmente restaurar a conversação livre entre argumentos rivais.
7 Se devemos contrariar o tribalismo em todas as esferas da vida social, a prioridade em meu entender deve estar na Universidade. É ela a mais ancestral instituição ocidental que permitiu preservar e transmitir a herança de Atenas, Roma e Jerusalém, à revelia de múltiplos disparates políticos. E conseguiu fazê-lo porque se recusou a ser sede de rivalidades políticas tribais. A Universidade é a sede por excelência da aristocrática democracia das maneiras. Esta ideia ancestral foi memoravelmente celebrada nas palavras de John Henry Cardinal Newman (1801-1890):
“Uma Universidade é um lugar onde o inquérito é promovido e as descobertas verificadas e aperfeiçoadas, e a rudeza tornada inócua, e o erro exposto, pela conversação de mente com mente e de conhecimento com conhecimento.”
8 Esta ideia fundamental de Universidade foi recordada por outro imigrante na América, o distinto filósofo alemão Leo Strauss (1899-1973). Disse ele que “a educação liberal é o antídoto para a cultura de massas, […] para a sua tendência para produzir somente especialistas sem espírito ou visão e voluptuosos sem coração. A educação liberal é a escada pela qual tentamos ascender da democracia de massas para a democracia no sentido original — democracia, numa palavra, entendida como uma aristocracia que se alargou a uma aristocracia universal”.
Post scriptum 1: Parabéns enfáticos ao semanário Expresso, que acaba de celebrar 49 anos — sempre dedicados à liberdade de informação e de opinião. Fundado corajosamente ainda durante a patética ditadura do chamado Estado Novo [‘Novo’ como distintivo do despotismo da inovação, teria dito Edmund Burke, em defesa da ancestral aristocrática democracia liberal], o Expresso manteve sempre o sentido de liberdade e de pluralismo que distingue o jornalismo do livre Ocidente. Mil obrigados ao Expresso e ao seu fundador, Francisco Pinto Balsemão, pelo aristocrático sentido democrático de dever para com a liberdade. E um voto de genuína solidariedade contra o vil ataque informático de que o jornal foi alvo precisamente quando assinalava o 49º aniversário.
Post Scriptum 2: Parabéns à Duquesa de Cambridge, Catherine Middleton, que fez ontem, domingo 9 de Janeiro, 40 anos. A sua elegância, sentido de dever e boas maneiras constituem sinais encorajadores de que a herança exemplar da Rainha Isabel II — símbolo primeiro da aristocrática democracia das maneiras — vai perdurar contra a vulgaridade dos tribalismos rivais.