Em 1958, houve eleições presidenciais em Portugal. Era no tempo de Salazar. Por causa do general Delgado, houve alguma curiosidade internacional. O New York Times deu-se até ao trabalho de explicar o que se passava. Não, não era como na América. O presidente seria quem o chefe de governo quisesse. Ia ser um almirante, mas, segundo o New York Times, podia ter sido um polícia sinaleiro, se fosse essa a escolha do ditador. Era assim em 1958. Em 2020, o chefe do governo ainda tenta fingir que escolhe o presidente da república, como se viu na Autoeuropa. Mas no que António Costa é mesmo soberano é noutra coisa: a eleger “génios das Finanças”. Não um ministro, porque isso está ao alcance de qualquer mortal que seja primeiro-ministro, mas um “génio”, ou, na linguagem futebolística que o regime usa para fazer de conta que é popular,  um “Ronaldo das Finanças”.

A posição de “Ronaldo” foi ocupada até agora por Mário Centeno. Há uns tempos, percebeu-se – pelos “sinais” típicos das autocracias — que não estava para durar. E esta semana, eis subitamente alguém em quem o país nunca reparara levantado à glória de novo “Ronaldo”. Foi um secretário de Estado. Podia bem ter sido, como na história de Salazar, um polícia sinaleiro. Não teria feito qualquer diferença. O jornalismo estaria agora igualmente embasbacado com a sua genialidade, a contar histórias de como, no cruzamento onde o “Ronaldo” costumava estar de serviço, o trânsito fluía muito certinho. Ronaldo das Finanças é quem António Costa quiser.

A pergunta é esta: porque é que os ministros das Finanças de António Costa têm de ser Ronaldos?  Porque é que não podem ser apenas ministros das Finanças? Porque é preciso fingir. Sim, isso: fingir. Em 2016, foi preciso fingir que a possibilidade de fazer “reposições de direitos” não se devia ao ajustamento conseguido por Passos Coelho, com Vítor Gaspar e Maria Luís Albuquerque no Ministério das Finanças. Desde então, foi ainda preciso continuar a fingir que a política financeira não se reduziu a manter a carga fiscal do ajustamento e a fazer cativações para justificar, em Bruxelas, o apoio financeiro europeu que, desde os anos 90, disfarça a estagnação económica portuguesa. Esse apoio requer um certo valor do défice. Os “Ronaldos” trataram de o conseguir sacrificando tudo, menos as classes que o PS e os seus aliados resolveram tratar como clientes eleitorais. É essa “genialidade” que o governo manda a imprensa admirar. E a imprensa, atenta e veneradora, admira.

Há duas décadas, que o regime português é um longo crepúsculo adoçado pelos juros baratos do Euro. Esta estagnação, porém, não é politicamente neutral. Facilitou o projecto socialista de domínio do país, assente no controle do Estado, e portanto dos recursos externos a que o Estado tem acesso através da integração europeia, e na segmentação cínica de uma sociedade cada dia mais pobre e vulnerável. Hoje, os portugueses estão divididos entre os que, sob a protecção do Estado, recebem aumentos durante a quarentena e os que, no “sector privado”, estão condenados ao lay-off e ao desemprego; ou entre os que, à esquerda, podem manifestar-se, fazer comícios e bater palmas aos humoristas de serviço, e os que, como os católicos, têm a polícia a cercar os locais onde possam eventualmente reunir-se. Nunca tanta gente foi empurrada para fora do regime. Há agora em Portugal dois países: o das esquerdas anichadas no Estado, e o dos outros. É essa a verdadeira obra desta governação. A abstenção tem sido, por enquanto, o mar onde desaguam as exclusões sociais e as discriminações políticas do poder socialista. Alguém se preocupa com o risco de um dia vir desse mar uma onda que varra tudo?

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