Quem nunca epigrafou uma crónica com uma expressão latina adaptada a qualquer coeva discussão, que atire a primeira pedra. E quem nunca o fez apropriando-se de uma expressão que, porventura, poderá ter utilizado uma vez no espaço de um ano, que atire a primeira e a segunda.

Ou até, juntem-se todas as pedras votadas, neste confinado ano, ao esquecimento pelos nossos pés, pressas, traquinices ou delinquências. Que se juntem para colecionismo de alguém, para realização de um pessoano castelo ou para delícia dos fãs daquele equilibrismo vertical à beira mar plantado, qual Jenga revertido.

Façamos o que as fronteiras da criatividade e do vandalismo nos permitam, mas deixemos os corporativistas fora deste jogo, esvaziando a concavidade das camisas onde têm vindo a armazenar as pedras com que pretendem atingir Rúben Amorim.

Como bem descrevia Paulo Trigo Pereira há umas semanas, Portugal, a par dos nossos vizinhos ibéricos, destaca-se com a seguinte excecionalidade: o número de ordens profissionais, próximo de 20, é “algo inédito e incomparável em países desenvolvidos da União Europeia”.

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Uma constelação de ordens, associações e sindicatos devidamente outorgados e financiados para vigiar o acesso às profissões nas quais se especializam. Controlar os caudais de admissão como escudo protetor dos interesses dos seus. Em última e utópica análise, uma linha de defesa do bem comum.

Evitando esquadrinhar a seletividade do “bem comum” que o cansado anacronismo de grande parte dos nossos mais mediáticos sindicatos faz questão de constantemente exibir, a defesa do interesse público por uma Ordem é algo bastante debatível e, mais ainda, complexo.

A Ordem dos Médicos, por exemplo. São-me líquidas as vantagens advindas da inscrição na Ordem e sua obrigatoriedade para legalmente exercer Medicina. Não porque uma pessoa deva ser proibida de consultar um médico que, por qualquer motivo, se tenha escapado a tal cunho. Seria uma decisão dessa pessoa. Imagine-se, porém, essa consulta – e a hipotética falta de conhecimento do profissional em causa – como a origem da proliferação da Covid-19. Aqui, o interesse público é óbvio. Por outro lado, a pertinácia da Ordem em avaliar negativamente o proposto curso de Medicina da Universidade Católica Portuguesa (UCP) já me soa bem mais a interesse corporativista e individual do que público. Corporativista, pois que o poder limitador de uma Ordem é o respaldo da sua força. Seletivo, na medida em que mais concorrência afetará os atuais protegidos. Desejando impedir todos os médicos que se formariam na UCP de desenvolverem, de inovar a prática da Medicina, pecam no público. Às vezes basta um rasgo…

O caso de Rúben Amorim é incomparavelmente menos dúbio e complexo. Aqui trata-se, somente, da chicotada do burocrata sobre o que lhe contesta a influência, a existência. O jovem treinador do Sporting firmou contrato sem qualquer dolosa mentira acerca dos diplomas que possuía. O Sporting era pleno conhecedor da situação e decidiu arriscar, baseado no velado diploma que um promissor percurso encerra.

Que interesses protege, então, a Associação Nacional de Treinadores de Futebol (ANTF)? O dos seus associados, treinadores, que pretendem dignificar o futebol português e, com isso, a sua profissão. Portanto, o bem público a defender seria o dos adeptos e acionistas que alimentam o desporto.

Mas quais adeptos? Não me parece que, clubite à parte, algum possa afirmar que Rúben Amorim denigra o futebol português, muito pelo contrário. Acionistas? Certamente que não, já que, desde a estreia do treinador no banco leonino, as ações do Sporting Clube de Portugal subiram mais de 60%.

Uma chicotada. Gratuita e contraproducente, que só descredibiliza a ANTF e os seus um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze, catorze vice-presidentes. Catorze vice-presidentes, numa direção de quinze pessoas. Que só descredibiliza o futebol português, seus treinadores incluídos, que a ANTF visa proteger.

O corporativismo inócuo e radical é a melhor salvaguarda das instituições que, lá no fundo, compreendem a sua modesta utilidade. Quanto ao ridículo, aquando percetível para muitos, é um excelente motor reformista, capaz de sabotar o mantra “as regras são para cumprir”. Faça-se bom uso do ridículo.