Na noite de domingo, pouca gente entendeu o filme. A precipitação de Francisco Assis, logo que foram conhecidas as primeiras projecções, e os exercícios histriónicos de António José Seguro pareceram a muitos uma forma atabalhoada de pressão sobre o governo e sobre o Presidente da República. Sabemos agora que não era nada disso. O objectivo não era provocar eleições antecipadas no país, mas impedir eleições antecipadas no PS. O alvo era outro: os oligarcas socialistas que, na noite da mitológica “derrota histórica da direita”, já estavam a negociar o fim da história de Seguro.

Os apoiantes de Seguro tentaram suscitar dúvidas morais sobre a iniciativa de Costa. Não têm razão. Trata-se de uma questão de sobrevivência, em que prevalece a lei suprema. Seguro, através de duas eleições feitas para castigar governos em regime de austeridade, não deu ao PS mais do que a perspectiva incerta de um pequeno grupo parlamentar, perdido no mar de um Parlamento fragmentado, com os três partidos de governo reduzidos à sua expressão mais simples. O risco era demasiado grande. Como António Costa explicou, não basta ganhar eleições, mas “ganhá-las em condições de governar”. E consequentemente, pediu uma oportunidade para tentar o que Seguro não provou ser capaz de conseguir.

Estão os problemas resolvidos? Não estão. António Costa encontra-se, neste momento, na mais perigosa de todas as situações. Basicamente, está nas mãos, quer de Seguro, quer dos inimigos de Seguro. António Costa apenas pode ser o António Costa de que o PS precisa se for como que aclamado no partido. Só se for consensual no PS pode aspirar a ser consensual no país. Está por isso ao alcance de Seguro diminuí-lo através de uma arrastada querela estatutária e aparelhística, que faça de Costa, aos olhos de toda a gente, o chefe faccioso de um golpe de estado interno. Pior: essa briga pode ainda comprometer Costa definitivamente com aqueles que, na área do PS, condicionaram e minaram a liderança de Seguro.

Ora, a António Costa, para fazer um novo PS, não lhe basta romper com Seguro. Precisa ainda – se for capaz — de romper com os inimigos de Seguro, a começar pelos vingadores do socratismo. A “tralha socrática”, com a ajuda das aulas magnas, impôs ao PS, nos últimos anos, um radicalismo cínico e uma intransigência raivosa que reduziram o PS a uma espécie de Bloco de Esquerda Light e o desqualificaram como partido com aspirações de governo. Não se pode dar o poder a um partido apenas para ajustar as contas pessoais deixadas pelo PEC4, como anseiam os ressentidos do socratismo. Seguro, porém, nunca soube ou foi capaz de rasgar outro horizonte, como se viu em Julho de 2013. A votação europeia do PS sugere que o eleitorado sentiu isso.

O PS tem muita coisa para demonstrar. Tem de demonstrar que não julga que basta “capitalizar” o descontentamento para conquistar o poder. E tem acima de tudo que provar que uma vitória sua não será a revanche da clique desalojada em 2011. É esse o trabalho de António Costa, se não quiser ser, por mais qualidades que sejam as suas, apenas outra versão de Seguro. Convém-lhe estudar o caso de Matteo Renzi e de compreender porque é que líder do Partido Democrático ganhou as eleições europeias. E convém-lhe também, provavelmente, negociar com Seguro, e perceber que os inimigos de Seguro dentro do PS, se ainda não são, têm de ser os seus inimigos. Se for esse o caminho de Costa, o que está em jogo é demasiado importante para não lhe desejarmos boa sorte.

 

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