O antropólogo Claude Lévi-Strauss contou uma vez que raras vezes ia ao teatro, porque tinha sempre o sentimento de ter entrado no apartamento errado do prédio e de assistir a uma discussão conjugal. Eu tenho uma reacção semelhante com as disputas no interior dos partidos. Em princípio, a coisa não me diz directamente respeito e sou assaltado pela vergonha da coscuvilhice involuntária. Se ao menos tivesse o à-vontade dos politólogos, com a sua sublime capacidade de se sentirem bem em todo o lugar, conhecendo de cor os cantinhos todos de todos os lares, as felicidades e as misérias das famílias políticas,  ainda lá ia. Mas falta-me o jeito, a imaginação, e, se calhar, o interesse para o exercício. No máximo, permito-me atenção ao modo como as coisas dos partidos afectam a minha própria casa. Nestas eleições, eu e a minha mulher notámos, por exemplo, uma nítida mudança de comportamento da nossa gata, que se tornou mais altiva e reivindicativa, sem dúvida por se sentir doravante representada por quatro deputados do PAN. E confesso que o que se passa com os vizinhos do PSD também me toca o suficiente para me fazer pensar um pouco sobre o que por lá ocorre.

Não consigo deixar de sentir uma certa pena por Rui Rio. Apesar de tudo, quaisquer que tenham sido os seus erros, fez um bom trabalho à frente da Câmara do Porto e não me arrependo nada de ter votado nele nesses tempos. As qualidades que mostrou, naquele contexto, superaram amplamente os seus defeitos. Mas, desde que se tornou líder do PSD, tudo magicamente se inverteu: as qualidades quase se tornaram imperceptíveis e os defeitos magnificaram-se. Enumerar os seus erros é quase uma tarefa penosa. E o mais radical de todos foi sem dúvida o seu posicionamento retrospectivo face ao governo de Passos Coelho. É claro que teria, de qualquer maneira, de criar um estilo diferente do do seu antecessor na liderança do partido. Mas decidir optar pelo silenciamento da acção de um homem que deu provas de uma rara coragem moral e política em anos dificílimos foi ceder aos piores impulsos e, ainda por cima, colaborar directa e voluntariamente com a grossa impostura do governo de Costa e das esquerdas, para quem Passos Coelho representa o insuportável em política, pela boa e simples razão que a sua mera existência recorda, com a força de um facto bruto, a tragédia nacional que foi o PS de Sócrates e a quase falência do país que esse singular indivíduo, entre outras coisas, promoveu. Que o PS se recuse, ainda hoje, a olhar esse facto de frente, já é péssimo. Que Rio com isso tenha colaborado é literalmente imperdoável.

Depois, e em estreita relação com isto, Rui Rio, num sectarismo que nenhuma preocupação de eficácia organizativa justificava, afastou do núcleo activo do PSD todos aqueles que dele discordavam, com relevo para os que se haviam encontrado ligados a Passos Coelho: na prática, sugeriu-lhes que abandonassem o partido. Foi isso que, por estes dias, Cavaco Silva, com toda a razão do mundo, lhe censurou. Dadas as circunstâncias, o que daí imediatamente resultou foi um abissal decréscimo da qualidade do pessoal político com que o PSD podia contar. As listas para deputados do PSD foram um conjunto de anónimos destinados a permanecerem anónimos mesmo que decidissem em conjunto concorrer a todos os reality shows das televisões. Se há celebridades que são célebres apenas em virtude da sua própria celebridade, sem que se lhes conheça um outro motivo plausível para o serem, também há anónimos que o são pela própria natureza do vazio que encarnam. Não parece uma boa escolha para a tão falada “renovação do pessoal político”.

Depois – e isto, se não é tão grave quanto a atitude face ao governo de Passos Coelho, é pelo menos tão irritante -, Rui Rio decidiu construir o que apresentou como a sua oposição ao governo de António Costa a partir de uma estratégia no mínimo discutível: falando ininterruptamente, exceptuando nos últimos dias da campanha, da magnífica excelência da sua própria pessoa. Nunca o “detestável Eu” de Pascal esteve tão à mostra. Ele ia dar um “banho de ética” (horrenda expressão) na política, banho esse só possível em consequência da sua proficiência universalmente reconhecida no capítulo. Ele era a virtude que não se deixa nunca capturar, na sua excelsa integridade, pela corrupta “agenda mediática” da “política-espectáculo”, pela qual o baixo mundo se deixa guiar. Ele não era – suprema manifestação dos seus indisputáveis méritos – “de direita”, nem sequer de “centro-direita”, e, como consequência, o PSD também não era, nunca o fora. Nesta visão, o PSD é um “facto social” que não é nem anterior nem exterior à sua pessoa: é uma directa e exclusiva emanação dela. E poderia continuar por muito tempo. Como resultado de tudo isto, acabou a noite eleitoral a proclamar, ufano, a sua vitória sobre as agências de sondagens. Havia sido derrotado politicamente, mas as empresas de sondagens, que no início lhe haviam diagnosticado um resultado ainda pior, tinham apanhado porrada da valente. No fundo, há lógica nesta aberração: para alguém que passa o tempo todo a falar de si mesmo e do contraste da virtude própria com o desvario das exigências mundanas, é compreensível que uma tão idiossincrática vitória (muito relativa, de resto) lhe fosse, no mundo imaginário em que vive, a mais saborosa e apetecível.

Em tudo isto, um ponto merece a pena ser sublinhado, sem relação com as motivações pessoais de Rui Rio: a relação do PSD com a direita e a esquerda. Sou velho o suficiente para ter memória. Fora da retórica dos vários tempos e das variadas circunstâncias, o PSD, desde Sá Carneiro, foi um caldeirão em que coube gente do centro-direita e do centro-esquerda (“centro” aqui é equívoco, mas não há maneira de não ser). Dito de outra maneira: nunca foi suficientemente de direita para não caberem lá pessoas que, no fundo, tinham certas posições “de esquerda”, nem certamente o bastante de esquerda para se tornar impalatável a quem se sentia “de direita”. Ao mesmo tempo, sociologicamente, o PSD sempre representou a direita. Nem se poderia imaginar como haveria de não ser assim. Quem, sociologicamente, representaria tal lugar se não fosse o PSD? Pretender o contrário, com o recurso encantatório à “social-democracia”, é, pura e simplesmente, uma mentira. E uma mentira particularmente infeliz, já que essa natural equivocidade é o maior dos méritos desse partido que, pela sua diversidade, garante uma boa dose de bom-senso que tende conspicuamente a faltar aos outros.

Moral desta história? Que venha alguém, depressa, que substitua Rui Rio. Eu sei que, tudo isto dito, poderá parecer hipócrita o elogio que dele no princípio fiz. Mas é tudo menos isso. Até o repito. Rio é um político que já mostrou, em circunstâncias difíceis, qualidades dignas de louvor e admiração. E não consigo deixar de experimentar, aqui e ali, mesmo nos seus maus momentos, uma certa simpatia pela sua pessoa. Acontece, no entanto, que foi um desastre à frente do PSD, por razões que são fáceis de enumerar. Azar dele – e azar nosso. Até porque, contrariamente ao que se tornou a doutrina corrente dos opinadores, não era assim tão difícil obter um resultado muito melhor contra Costa.

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