Procuro, em geral, não me repetir. Variar de assunto. Falar de coisas diferentes. Não me armar em especialista. Sobretudo em matérias nas quais o meu conhecimento não difere em sofisticação do cidadão comum, que são quase todas. E, em política, não afectar paixões excessivas, sejam ódios ou amores, como quem usa as palavras para excitar em si, entusiasmado, convicções à prova de bala. Mas a verdade é que, com estas precauções todas, às vezes – poucas, graças a Deus -, deixo-me apanhar por um assunto ou outro. Desta vez é Rui Rio.

Confesso que não o percebo, por mais que tente o velho truque de me pôr, num exercício de simpatia, no lugar do outro. “Não o percebo” quer aqui dizer: não percebo o lugar em que ele se coloca. Tento, mas, por mais que a imaginação se empenhe, sinto-me no vazio. Como se a sua identidade não fosse capturável através da descrição de um ponto de vista sobre a sociedade portuguesa, mas apenas por meio da afirmação pura e simples da sua identidade pessoal, invariavelmente apresentada como magnífica e excelsa. Fora disso, não consigo encontrar nada: uma visão, um projecto, uma identidade que não seja apenas uma afirmação do Eu, mas algo corporizado num sistema de ideias, boas ou más, que iluminem um bocadinho o mundo através do lugar onde está.

Esse lugar, ele define-o orgulhosamente como o “centro”. E no outro dia, na Madeira, lá voltou a expô-lo pela milésima vez. O PSD, disse ele, é “um partido de centro”. Não disse, notem, um partido “moderado”, que significaria, com propriedade, uma recusa de extremismos, de que se podem dar variados exemplos: disse “centro”. O que é o “centro”? Na ausência de qualquer caracterização política digna desse nome, só há uma definição possível: é ele. É ele o “centro”.  Recusando, aparentemente, qualquer necessidade de oferecer um conteúdo político substantivo a esse lugar, define-o apenas e unicamente pela existência da sua própria pessoa, que englobaria a do PSD. Ficamos, assim, apenas a saber que o centro, de acordo com a sua identidade inabalável, é virtuoso.

A partir desse lugar, um significado político vazio, disparou na Madeira contra os seus adversários políticos internos, presumivelmente descentrados, isto é, diversos dele. O que não deixa de ser curioso para quem declarou altaneiramente que se absteria de participar no debate interno com Rangel para se dedicar unicamente ao combate a António Costa. Não vou comentar o que, mesmo aos olhos mais desprevenidos, foi esse combate nos últimos anos: com a maior das boas vontades, foi o mais invisível que imaginar se possa. Em contrapartida, vale a pena reparar que, na frente interna, onde sente a sua identidade pessoal ameaçada, cultiva o conflito permanente, e mais ainda, se possível, desde que se declarou indisposto a conceder-lhe qualquer atenção.

Os descentrados, vistos por ele, só sabem “dizer mal” de Costa. Esta expressão é significativa. Criticar é, para Rui Rio, “dizer mal”. Esta redução da crítica à maledicência – curiosamente reminiscente de José Sócrates – é esclarecedora. A maledicência dirige-se às pessoas, não às ideias e às políticas. No fundo, é o Eu de novo a falar, o Eu que se sente atacado. Por interposta figura de Costa, é dele que “dizem mal”. E, com efeito, a partir de um lugar vazio, despido de visão e projecto, que pode ser atacado senão o Eu? O psicodrama substitui em permanência o conflito político, essencialmente desordeiro, e, portanto, a seus olhos aberrante. Costa, é claro, agradece, até porque, do fundo do seu próprio vazio de ideias, é a política, concebida como puro exercício de conquista e manutenção do poder, a única coisa que lhe interessa. Um líder da oposição que vive num psicodrama permanente dá-lhe todo o espaço e mais algum para fazer o que quer e sabe fazer. Não admira que os costistas não lhe poupem elogios, que Rio recebe com evidente prazer. É do PS, no fundo, que ele quer o amor: “tenho ouvido muita gente do PS a dizer que se for eu o candidato do PSD não vota no PS e vota no PSD”. Que doce ilusão!

A recusa da política como conflito de ideias e projectos, que o lugar vazio do “centro” epitomiza, não é algo de próprio a Rio. É qualquer coisa que vem de muito atrás, de tempos prévios à fundação da democracia e que, é verdade, teve sempre no PSD inúmeros representantes, ainda hoje expondo a sua sabedoria na televisão, o mais das vezes mansos e submissos. O conflito aterra-os, até porque risca abalá-los, e essa recusa untuosa e vegetal integra a sua visão do mundo. Como diz Dâmaso Salcede, numa cena memorável d’Os Maias: “Eu não quero problemas! Eu não quero problemas!”. O suave acordo, quaisquer que sejam as circunstâncias, é que é “chique a valer”. O que torna Rui Rio singular, e que faz dele uma figura quase trágica, distinguindo-o dessa gente que sobrevive a tudo, é esse desejo de acordo ser vivido acompanhado por uma afirmação do Eu, que os outros, por receios sortidos, se abstêm cuidadosamente de cultivar. No resto, é igual. A política, para ele, não é conflito. A diferença é que o Eu, o detestável Eu, é. Pode ser trágico, e até humanamente credor de compreensão. Mas politicamente é um desastre.

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