Nunca Portugal teve um governo com tantos ministros (19). Nunca um governo de Portugal teve tantos membros (70, contando com o primeiro ministro). Nunca houve tantos ministérios com tão bizarros nomes (“Economia e da Transição Digital”, “Ambiente e Ação Climática”, “Modernização do Estado e da Administração Pública”, “Coesão Territorial”). E nunca tantas secretarias de Estado se atropelaram a fazer mais ou menos a mesma coisa (a lista é tão longa que poupo os leitores).
Tem lógica? Tem: quando não se sabe como resolver um problema, cria-se um grupo de trabalho, depois uma comissão eventual, a seguir uma secretaria de Estado, por fim um Ministério. É o princípio da entropia das organizações, de que Portugal há muito é refém e o PS, no que ao Estado diz respeito, sumo sacerdote.
O enorme Governo que temos – e que não há-de ser o maior de António Costa, esperem só pela próxima remodelação e vão ver como ele crescerá ainda mais… – é o corolário de um programa – o programa do PS é mesmo mandar no país, porque é assim que acha que deve ser – e de uma necessidade – a de dar emprego aos seus militantes e às clientelas. E se esta necessidade é comum a todos os partidos de poder em Portugal, que estão cada vez mais transformados em partidos de clientelas, o que distingue o PS é mesmo a sua ideia de que é o Estado, e o Estado comandado pelo PS, que resolve os problemas do país.
Este Verão, António Barreto, que conhece bem o PS, num texto importante sobre o programa eleitoral do partido, não hesitava em escrever que os socialistas estão “a viver o seu momento mais estatal, dirigista e centralizador de sempre”, dando “sinais de regresso a uma das suas origens, a mais estatizante e jacobina”. Em concreto, através daquele programa o PS propunha-se “enquadrar, comandar, dirigir, orientar e, numa palavra, fazer”. Mais: o PS “não quer deixar fazer, não deseja que outros façam, quer fazer”, e o que ele não fizer, “proíbe ou dificulta”.
Basta ver que palavras são mais vezes usadas no Programa do Governo. Ora bem, “reforçar” surge à frente (242 vezes), logo seguida por “promover” (192 vezes). A palavra “plano” é usada nada menos de 99 vezes, um pouco menos que a palavra “criar” (118 vezes). Não restam dúvidas: o Governo propõe-se fazer – nunca se propõe permitir que façam.
Como o Programa de Governo é uma reprodução quase fiel do programa eleitoral, com um ou outro retoque cosmético para fingir que se agrada à extrema-esquerda (e é mesmo só fingir, pois os pontos que retirou do programa, como a reforma das leis eleitorais, eram inexequíveis sem o apoio do PSD, e este não está pelos ajustes no horizonte deste legislatura), os pecados de Agosto são os pecados de Outubro.
Basta fazer um exercício simples, daqueles que permitem detectar tiques de linguagem, e ficamos sem dúvidas. Basta ver, por exemplo, que palavras são mais vezes usadas no Programa do Governo. Ora bem, “reforçar” surge à frente (242 vezes), logo seguida por “promover” (192 vezes). A palavra “plano” é usada nada menos de 99 vezes, um pouco menos que a palavra “criar” (118 vezes) e que a palavra “garantir” (100 vezes).
Não restam dúvidas: o Governo propõe-se fazer – nunca se propõe permitir que façam.
O Governo, para usar o provérbio chinês, só pensa em pescar, nunca imagina que pode ser útil ensinar a pescar. Ou simplesmente deixar pescar livremente.
O Governo faz exactamente o contrário do que John Kennedy propôs aos americanos no seu famoso discurso de tomado de posse: “ask not what your country can do for you — ask what you can do for your country”. Não perguntem o que o país pode fazer por vocês, interroguem-se sobre o que podem fazer pelo país.
Mas não, não é esta a visão de Portugal, nem do Estado, nem dos portugueses que o PS tem. A sua visão é mesmo a de cidadãos enquadrados pelo Estado, orientados pelo Estado, dependentes do Estado – na sua linguagem, “protegidos pelo Estado”, a que chamam “social”.
O PS, este PS, e António Costa, acreditam mesmo que é assim que vão trazer mais prosperidade ao país. Na sua intervenção no debate do Programa do Governo um dos poucos (o único?) ministro com alguma experiência no sector privado, Siza Vieira, assegurava que Portugal tinha progredido quando tinha tido “planos industriais”. Ouvia-se e era como se tivéssemos regressado aos “planos de fomento” do salazarismo. Só que nunca foram eles que fizeram o país dar saltos em frente – isso aconteceu quando o país foi confrontado com choques externos: a entrada na EFTA que permitiu a mais frutífera das expansões económicas nas décadas de 1960/1970; depois a entrada a CEE, o único período em que voltámos a ter taxas de crescimento realmente notáveis, no final da década de 1980; por fim o mais recente choque sofrido pela economia portuguesa, a crise de 2009/2013, também permitiu uma alteração estrutural da nossa economia, que se virou para os mercados externos (em 2008 as exportações valiam 28% do PIB, em 2018 já valiam 44%).
Não houve aqui qualquer plano, a longa mão do Estado não andou por aqui (a não ser a atrapalhar). Houve foi muita iniciativa privada. Houve empresários que tiveram de encontrar soluções para negócios que já não estavam a dar. Houve capacidade de aproveitar as oportunidades. Houve muito cerrar dos dentes. E felizmente houve menos Estado do que hoje se quer ter. Na década de 1960. Na década de 1980. E nos anos “neoliberais” da troika.
Mas não é este o país com que o PS sonha, porque neste país ele só vê defeitos. E por isso passa a vida a criar novos regulamentos, a tratar de ter bem controladas as entidades reguladoras e a procurar que tudo passe pelo gabinete de um ministro ou de um secretário de Estado.
Há décadas que este modelo não funciona. Se funcionasse Portugal não estaria a perder posições no ranking da riqueza dos países europeus. No entanto insistimos no mesmo modelo. Porquê, se insanidade é continuar a fazer sempre a mesma coisa e esperar conseguir resultados diferentes? Porque a fé no Estado parece ilimitada.
Há décadas que os socialistas acham que é assim – criando mais regras, mais organismos, mais secretarias de Estado, por fim mais ministérios – que se consegue criar os instrumentos do crescimento. Orientar o crescimento. E prescientemente dizer aos investidores onde devem investir – ou então complicar-lhes a vida se acharem que querem investir onde não devem.
Há décadas que este modelo não funciona. Se funcionasse Portugal não estaria a perder posições no ranking da riqueza dos países europeus – hoje só temos oito países da Europa mais pobres do que nós, se mantivermos o actual diferencial de crescimento para os nossos parceiros em 2025 só teremos quatro países atrás de nós (a Bulgária, a Croácia, a Roménia e eventualmente a Grécia).
No entanto insistimos no mesmo modelo. Porquê, se insanidade é continuar a fazer sempre a mesma coisa e esperar conseguir resultados diferentes? Porque a fé no Estado parece ilimitada, ou não tivesse António Costa promovido Alexandra Leitão a ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública.
Perguntar-se-á de novo a que propósito, já que no Ministério da Educação não se conhece o balanço qualitativo da sua actuação. É verdade: acabou com quantos contratos de associação pôde, nesse processo fazendo com que vários colégios privados que tinham prestado bons serviços às populações fechassem. Ficaram os alunos melhor servidos? Poupou o Estado dinheiro? Ninguém sabe, porventura nunca ninguém saberá porque não interessa saber.
O princípio ideológico da ministra é que o Estado faz sempre melhor – o que é mais ou menos sinónimo de “o PS faz sempre melhor”. Por isso só imagina um Estado ainda mais presente nas nossas vidas. Por isso mesmo disse, numa entrevista ao Público, que “há zonas do país onde a presença do Estado não se faz sentir como devia, no bom sentido. As pessoas sentem que o Estado só chega lá através da autarquia local, da escola ou de um centro de saúde.” A minha pergunta é: mas necessita mesmo o Estado de estar mais presente, porventura para além daquilo que diz respeito ao essencial, que é a segurança das populações, e que é também aquilo onde mais falha?
A resposta – a tétrica resposta – é que o Estado é um monstro que ganhou vida própria, como até a ministra implicitamente reconhece a certa altura (“temos ministérios sectoriais e os serviços que também têm os seus interesses”). Pior: a visão deste PS é a de achar que, com a ajuda da revolução digital, vai por fim cumprir o sonho tipicamente estalinista do “planeamento centralizado quer do recrutamento, quer das promoções”, um pesadelo orwelliano que diz bem da matriz intrinsecamente estatista e jacobina daqueles que nos governam. O sonho de controlar tudo. Tudo, mesmo tudo.
Regresso assim aonde comecei: o gigantismo deste governo não é um acaso nem é fruto da acomodação de conveniências. O gigantismo deste governo é uma decorrência da natureza deste PS, e o que é mais assustador é a que a forma de pensar dos socialistas é exactamente aquela que lhes convém para, sem problemas de consciência, tomarem conta disto tudo.
Se isto não é um pesadelo, não sei o que é um pesadelo.
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