José Sócrates foi certamente o mais desinteressante primeiro-ministro do Portugal democrático. Porque o mais óbvio e previsível. A partir de certa altura tornou-se manifesto que a política que conduzia padecia de uma espécie de desprezo pela realidade e de uma sobrevalorização da aparência. Tudo o que contava era o que lhe parecia brilhar à superfície. À sua maneira, isso revelava o homem, a sua atitude perante as coisas. E revelava-o de um modo que, a pouco e pouco, não deixava margem para dúvidas a ninguém com dois dedos de testa. Nessa sua deslocação em relação à realidade, não era só uma política que se revelava: era mesmo uma atitude mental, consistente mais por compulsão do que por método, por mais método que houvesse, e havia.

Claro que muita gente o defendia com unhas e dentes. Todos os delírios – auto-estradas, aeroportos, e por aí adiante – eram justificados. Tudo o que patentemente, a cada dia que passava, o tornava alguém politicamente infrequentável, mas infrequentável mesmo, era visto como um acto de visão e de coragem política. E a defesa foi, militantemente, o ataque. Nada que mexesse escapava. Dos mais significativos aos mais irrelevantes opositores, tudo era varrido por uma máquina de combate orquestrada até ao mais ínfimo detalhe, que contava fiéis devotos e criaturas ocasionais e marginais, que nem se sabe se percebiam de facto o que estavam a fazer. Ao ponto de roçar o absurdo. Por causa de um pacato artigo escrito por mim no jornal i a propósito da célebre questão das escutas apagadas, Noronha Nascimento, então presidente do Supremo Tribunal de Justiça, sem dizer o meu nome, apelidou-me, numa entrevista televisiva, de “professor universitário travestido de comentador político”. O ridículo de um presidente do Supremo Tribunal de Justiça se ocupar assim de um insignificante artigo não tem nome. E as conversas com alguns amigos tornaram-se impossíveis, porque acabavam fatalmente no insulto. Desde que votar na primitiva AD, e em Soares Carneiro, defendendo umas inofensivas banalidades social-democratas, era motivo suficiente para se ser “fascista”, nunca havia visto nada assim, excepção feita ao pós-11 de Setembro. A graçola pateta e criminosa vinda daquelas bandas era o pão nosso de cada dia. A intolerância atingia proporções inauditas.

Tudo terminou, é claro, tinha de terminar, com o país de rastos, em 2011. Foi a primeira morte política de José Sócrates. Ela veio da demonstração cabal da incompatibilidade da escola de pensamento delirante, na sua versão mais extrema, com o governo de Portugal. Sabendo o que nos tem acontecido, não é pouca coisa. Sócrates partiu para um doce exílio em Paris, para aprender filosofia e escrever um livro que mostrasse a sua sofisticação intelectual. Detesto, até por razões compreensíveis, brincadeiras com nomes de pessoas, mas ninguém me tira da cabeça que, se se chamasse José Arquimedes, dado o amor de si da personagem, teria seguido matemática.

Depois voltou para nos ensinar semanalmente, nessa entidade incompreensível que se chama RTP e que todos pagamos, sem que ninguém lhe prestasse atenção, os segredos profundos da democracia. Com a costumeira desatenção e falta de respeito pela realidade e com aquela mistura altamente desagradável de didactismo e irritação, quando não ódio (ódio, sim).

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Até que lhe aconteceu isto, de que toda a gente fala. É óbvio que ninguém que não conheça por dentro os meandros da investigação sabe, com suficiência objectiva, se é verdade aquilo de que é acusado. Mas – e isso não tem, é claro, qualquer valor probatório – é lícito presumir, muito tentativamente, uma afinidade entre o comportamento ao qual Sócrates nos habituou, a incoincidência quase sistemática entre o que diz e a realidade, e as suas trapalhadas presentes. Em todo o caso, e isso não é susceptível de dúvida, o que tem vindo a sair nos jornais, mais do que justifica a sua detenção. E mais do que justifica alguma estupefacção face às reacções, aqui descritas por David Dinis (“Não ser mais suspeito do que o suspeito”), daqueles, Miguel Sousa Tavares e Clara Ferreira Alves, por exemplo, que decidiram considerar a própria investigação um crime. Estou muito longe de estar de acordo com as ideias principais (e até com a terminologia) do muito conhecido livro de José Gil sobre “O Medo de Existir”, mas se isto não é uma “estratégia de não-inscrição”, eu não sei mesmo o que é uma “estratégia de não-inscrição”.

Esta poderá ser a segunda morte de José Sócrates. As pessoas esquecem, pelo menos em parte, o que releva da má condução do País. Mas não se esquecem de uma coisa: a suspeita – ou, se tal vier a confirmar-se, a certeza – de que um homem político, sobretudo um primeiro-ministro (insisto: um primeiro-ministro, não um secretário de estado, nem sequer um ministro), aproveitou o seu cargo para enriquecer ilegalmente à pala da confiança que depositaram nele. Mesmo que, no limite, isso lhes tenha feito muito menos mal do que as suas decisões políticas efectivas. A vida é assim. A pedra de toque da confiança política não reside forçosamente em motivos estritamente políticos. Pode residir em razões de outro tipo.

Convém repetir.  José Sócrates, aconteça o que lhe acontecer, foi, e é, devido à sua intrínseca banalidade, consistentemente desinteressante. A atitude dos portugueses para com ele politicamente não o foi. Persistentemente, vem à cabeça a pergunta:  como foi tão fácil acreditar no personagem? O único artigo que colocou a questão nos seus devidos termos foi o de Helena Matos, no Observador, “A culpa não é de Sócrates. É nossa”. E é. Como foi possível, face a tudo o que saltava aos olhos, ele ter ganho as eleições de 2009? Devia-se poder esfregar nos olhos de um certo número de pessoas os vídeos dos debates que, à altura, Sócrates teve com Manuela Ferreira Leite, onde toda a deturpação da situação real de Portugal era evidente quase para além da evidência. Essa é que é a questão interessante e que, além de um estudo político, merece uma análise sobre a facilidade de acreditar. Sobre a tendência para acreditar e sobre os motivos que a fortalecem, quando toda a evidência aponta, com um mínimo de reflexão, no sentido contrário. A questão é sobretudo interessante não por causa de Sócrates nem sequer por causa das danadas das consequências que nos trouxe, e de que andamos a penar, mas por causa da própria natureza da democracia.

Por falar da democracia. Ontem, Mário Soares, ao visitar Sócrates na prisão de Évora onde este se encontra detido, declarou que “todo o PS está contra esta bandalheira” e que “este é um caso político”. Há uns “tipos” que andam a fazer uma “malandragem” contra Sócrates. Isto poucos dias depois de António Costa ter dito, com a sobriedade desejável nas circunstâncias – desejável para si, para o PS e para o País -, o exacto contrário. Mário Soares tem, sensivelmente desde há duas décadas, tudo feito para nos esquecer do que em tempos foi. Pessoalmente, tenho dificuldade em imaginar como poderá ir mais longe no ataque aos elementares costumes democráticos em benefício do seu sectarismo partidário, se é que “partidário” aqui ainda convém. Problema para o País? Não é verosímil. O País, no capítulo, pensa muito mais como Cavaco. Não há, na realidade, qualquer crise de regime, por mais extraordinário que seja, na aparência e na realidade, o que se passa com um antigo primeiro-ministro. Mas problema para António Costa, certamente. Não se vê como poderá António Costa aguentar, mantendo um mínimo de credibilidade, estas coisas que intimamente o desautorizam, e que, é claro, vão progressivamente subir de tom até o afogarem, a não ser que se decida a pôr, dolorosamente, a casa em ordem.