Os primeiros 20 anos deste século foram bastante ricos em acontecimentos que fizeram estremecer o palco geopolítico. Aconteceram mudanças estruturais relevantes nas relações entre as várias potências, o que nos leva a afirmar, com algum grau de certeza, que a ordem do pós-Segunda Guerra Mundial terminou. O que não significa que todos os pilares que faziam parte dessa ordem deixem de ter, simplesmente, a mesma importância que tinham antes. O que existe atualmente são potências revisionistas que competem contra a ordem liberal liderada pelos Estados Unidos da América (EUA). O maior exemplo de todas essas potências é a China. Henry Kissinger disse, em finais do ano passado, que os EUA e a China caminham cada vez mais para o conflito e conduzem a sua diplomacia de forma confrontadora. Kissinger é, de facto, um dos maiores especialistas na China. A sua política diplomática, enquanto Secretário de Estado norte-americano, deu início a uma nova era nas relações entre os dois países e foi ele o protagonista que permitiu o inédito encontro entre o Presidente Nixon e o chairman chinês Mao Zedong. O aviso parte, assim, de quem testemunhou de perto uma mudança de paradigma nestas relações bilaterais.
É precisamente no final desta segunda década do século XXI que os EUA alteraram a sua política estratégica global para com a China, tendo em consideração as tentativas de Pequim em alterar a ordem internacional para uma ordem baseada no seu modelo de governo. As tentativas dos EUA, de abertura e interdependência económica, e o estabelecimento de sólidas relações diplomáticas pouco fizeram para tornar a China mais democrática ou livre, ou como os especialistas americanos gostam de dizer: uma potência global responsável. Os EUA, agora, argumentam que as medidas fizeram o contrário e que o governo chinês fez nada mais do que aproveitar essa ordem para explorar as fraquezas do sistema e exportar influência em vários pontos do mundo. O modelo de governação do Presidente chinês Xi Jinping alterou algumas dinâmicas dos seus antecessores, aumentando o poder e controlo do Estado chinês sobre a economia e as pessoas, de uma forma nunca antes vista, tendo como apoio um sistema tecnológico de ponta. A China já não está em “peaceful rise”, frase célebre do anterior líder chinês Deng Xiaoping, e, de facto, já não precisa de estar em modo discreto, pelo menos é isso que descreve o novo pensamento do presidente chinês atual. Xi Jinping lidera a segunda maior economia mundial (será a primeira num futuro próximo), tem um dos exércitos mais poderosos do mundo (inclusive a maior força naval) e um mercado interno gigante. Um outro importante fator é a tecnologia. A China hoje é um dos países mais inovadores a nível mundial e não mais apenas a fábrica do mundo. Lidera o registo de patentes, tendo ultrapassado os EUA em 2019. Muita da sua aposta tecnológica, como os sistemas de inteligência artificial ou a cibersegurança, irão também fortalecer ainda mais a sua capacidade militar.
O crescimento da China nas ultimas décadas e o seu comportamento cada vez mais assertivo, com Xi Jinping, impulsionou sem dúvida esta mudança estratégica dos EUA. Mas também é verdade que as duas anteriores presidências americanas foram fundamentais para que tal acontecesse. Não é segredo que muitos analistas criticam a generalidade das políticas externas do Presidente Barack Obama. Foi na sua interação com a China que cometeu um dos seus erros mais relevantes. Os resultados negativos foram muitos, tendo sido incapaz de proteger os seus aliados da China, como, por exemplo, no confronto entre as Filipinas e os chineses sobre o recife de Scarborough, em 2012. Foi também incapaz de impedir a construção de múltiplas ilhas militares no Mar do Sul da China, com o objetivo de controlar as rotas marítimas e os vários territórios marítimos que ainda estão a ser contestados por países na região. Estes falhanços foram resultado de uma insistência exagerada por parte de Obama numa política de receios, demasiado previsível, que permitiu à China alavancar os alicerces necessários para a sua crescente assertividade e constante desafio perante os americanos. Os chineses conseguiram sempre prevalecer durante a presidência Obama e modelaram a ordem global de acordo com o que achavam ser os seus interesses.
Em 2016, a presidência de Donald Trump em pouco ou nada alterou a situação. Ainda assim, a política para com a China certamente mudou. Os EUA passaram de uma aversão ao risco para uma confrontação aberta, situação que alguns apelidaram de nova Guerra Fria. As opções de Obama encorajaram as pretensões hegemónicas da China, mas foram as guerras comerciais e os exercícios navais de Trump nos mares asiáticos que fizeram a China redobrar as suas políticas predatórias, fortalecer ainda mais o seu controlo nas regiões adjacentes e dissidentes (Hong Kong, Taiwan e Xinjiang) e aumentar a sua capacidade militar. Mais ainda, o unilateralismo de Trump e o seu protecionismo económico afastaram aliados cruciais na contenção dos chineses, como o Japão, a Coreia do Sul, a Índia e a Austrália. Países que representam os ideais democráticos que os americanos pretendem disseminar no mundo, mas que foram deixados à sua sorte.
A nova administração Biden, que toma posse dia 20 de janeiro, enfrenta uma série de desafios relativamente à China. E é das últimas duas presidências norte-americanas, que Joe Biden deverá tirar as maiores ilações. Ambas, na generalidade, falharam na sua estratégia para a contenção dos chineses, o que não significa que tenham utilizado só ferramentas inúteis. Para além de ter de restabelecer a confiança nas instituições internacionais, é importante aproximar-se novamente dos aliados. Principalmente, dos aliados que vivem mais de perto com as pressões chinesas, como o Japão ou a Austrália, mas também os países do Sudeste Asiático. Será crucial ter o apoio destas potências regionais para resolver questões que envolvam a China, como Taiwan ou o Mar do Sul. Biden terá de utilizar o “engagement” diplomático de Obama, tomando todas as precauções contra uma possível escalada. Essencialmente, deverá calcular bem o risco. E deverá também apostar na irreverência das políticas de Trump, sendo confrontacional quando a situação o exigir. Uma política mais cerebral, mas não previsível, certamente com muito mais pressão.
É importante responder à questão central da real força da China. Será que o seu crescimento ao longo das décadas e o pensamento estratégico de Xi Jinping não mascararam evidentes fraquezas? De forma a articular a sua política externa, os EUA deverão conhecer o real potencial da China, bem como as suas estruturas internas. Esta ascensão da China fez mudar as mentes de muitos especialistas nos últimos anos, para uma postura de maior receio de uma escalada de conflito entre os dois países. O professor Graham Allison, conhecido pela análise do conflito entre os poderes estabelecidos e as potências emergentes, referiu que a rivalidade entre Washington e Pequim será uma característica que irá definir as relações internacionais atuais e no futuro próximo. Popularizou o conceito da “Armadilha de Tucídides”, que define este mesmo conflito militar incitado pelo receio dos poderes estabelecidos em relação às potências emergentes. Ainda assim, há simplesmente quem não acredite que a força global da China (poder emergente) possa ser comparada com os EUA (poder estabelecido). É aqui que é interessante olharmos para a análise do analista de geopolítica George Friedman, em que refere que é um erro considerar que o crescimento da China chegará a um ponto em que irá desafiar verdadeiramente o poder dos EUA, de forma existencial. A verdade é que a pressão que os americanos estão a exercer sobre a China é por escolha própria e os riscos são mais baixos do que a maioria pensa. Acompanhando este raciocínio, começamos por desconstruir o mais importante fator de força da China, a sua economia. A primeira realidade é o facto do mercado doméstico chinês não conseguir absorver financeiramente os produtos produzidos pela indústria chinesa. Como tal, cerca de 20% do PIB da China é gerado por exportações, onde 5% são do seu maior cliente, os EUA. Um país extremamente dependente de exportações é um país mais vulnerável do que outros, pois está dependente de condições externas ao seu controlo, mais ainda, se o seu maior rival for a sua principal fonte de receita. É evidente que a China enfrenta uma série de ameaças não-militares dos EUA, porque os americanos apenas são dependentes de exportações para a China em 0,5% do seu PIB.
Existem outros problemas ligados à geoeconomia, para vantagem dos EUA. A China, para ter acesso aos mercados, precisa de portos marítimos. O principal ponto de acesso para Pequim é o Mar do Sul da China (razão pela imensa necessidade de controlo desta região e os constante conflitos), sendo que os chineses necessitam de linhas marítimas em pelo menos um ponto, ou mais pontos preferencialmente. Os EUA não necessitam de linhas marítimas naquela região, apenas precisam de negar essas ligações à China. As diferenças entre as duas operações são imensas – os chineses precisam que o poder naval americano se retire, os EUA precisam apenas de se manter em posição para disparar mísseis e outros projéteis. Igualmente diferentes são as posições e os poderes entre a marinha americana e a chinesa. A marinha americana controla o Pacifico desde as ilhas Aleutas, no Japão, Coreia, Taiwan, Filipinas, Indonésia e Austrália, o que possibilita um verdadeiro cordão naval, sofisticado e de alianças muito antigas com poderes regionais muito relevantes. Aqui tocamos noutro ponto de interesse, as alianças. A China não possui alianças importantes, o que priva o país de opções estratégicas relevantes. Esse tem sido um problema crónico chinês, que também está ligado ao facto da cultura liberal americana/ocidental ser hegemónica. Além da difícil saída pelo mar, tem uma fronteira terrestre muito complicada, onde possui dificuldades geopolíticas e geográficas. Na primeira, possui vizinhos antagónicos, como, por exemplo, o Vietname ou a Índia, com os quais tem conflitos atuais. Na segunda, possui, a Sul, uma fronteira montanhosa, os Himalaias, a Norte e a Oeste o deserto gelado da Sibéria e o deserto infernal de Gobi. Mesmo uma possível aliança com a Rússia, com a qual partilha rivais semelhantes, como os EUA, é improvável. Os russos têm uma área de influência no Ocidente e no Cáucaso. Nem têm força naval relevante para as operações chinesas do Pacífico. Um ataque de ambos não retiraria a pressão dos EUA.
Por ultimo, a força militar e tecnológica chinesa está em crescente. Friedman indica que a questão militar não se centra no tipo de equipamento utilizado pelos exércitos, mas qual o exército que os utiliza. Os EUA são a principal potência naval dos últimos 100 anos e a China não tem qualquer experiência. A última batalha naval que travou foi em 1895 e perdeu. Não existe tradição naval chinesa, por mais tecnologia que tenha (algo que os americanos também possuem).
Os EUA têm uma situação estável na Ásia-Pacífico, onde tiveram conflitos nos últimos 80 anos, desde a Segunda Guerra Mundial, com as guerras do Vietname e da Coreia e por ali se estabeleceram desde então. Não irá invadir o território chinês, mas certamente tem todas as capacidades e todas as condições a seu favor para a contenção da China. Tal poderá indicar que este não será o século chinês, mas antes o século do status quo.