Vai por aí um grande enlevo com o PCP. Eu sei que o partido fez cem anos, uma bonita idade. Eu sei que o primeiro-ministro aprecia a forma discreta e, reconheça-se, séria com os comunistas negoceiam, sem números para a bancada à moda do Bloco. Eu também sei que Jerónimo de Sousa tem um lado de avô inofensivo que desarma maiores alarmes. Mas daí a passar ao PCP um estatuto de partido moderado e democrata a quem devemos estar agradecidos – sim, isso mesmo: agradecidos – vai uma grande distância.

Que Daniel Oliveira escreva sobre o que a democracia deve ao PCP faz parte da ordem natural das coisas. Afinal de contas ele cresceu no PCP e mesmo tendo deixado de ser comunista nunca deixou de ser aquilo a que antigamente se chamava um “compagnon de route”. Já bem diferente é constatar a necessidade de Miguel Esteves Cardoso dar vivas aos comunistas e desejar que ainda cá estejam daqui por cem anos. Mais extraordinário porventura ainda será olhar para uma banca de jornais e ler, sobre uma fotografia que ocupa toda a largura de uma primeira página, um título extraordinário, sugerindo que o PCP anda há um século “em busca de uma sociedade que ainda não existe”. Como? Mas então se há cem anos o PCP nasceu precisamente em nome de uma sociedade que já estava a ser construída, a sociedade soviética? Mas se quando a Revolução Russa fez 50 anos (em 1967), o Avante!, ainda clandestino, dedicou uma edição inteira às maravilhas da pátria do socialismo (quem tiver dúvidas, é consultar a edição que está online), em que curva do caminho se perdeu então essa sociedade ideal?

Podia continuar, mas chega. O meu ponto é simples: se o PCP continua a ser aquilo que é, ou seja, um partido comunista que se mantém fiel ao marxismo-leninismo – e basta ler a edição deste mês de O Militante, para o confirmar, nomeadamente os artigos O PCP faz 100 anos – O caminho que nos trouxe até aqui e Lénine, o leninismo e a Revolução Portuguesa –, então porque tratamos um partido que tem um sonho totalitário com mais benevolência do que os extremistas de sinal contrário? A explicação talvez se encontre no facto de esta gente não só não ler o que o PCP escreve para os seus, como nunca ter lido Lenine e, por isso, não saber que a arte da dissimulação é inata ao leninismo.

Todos os políticos mentem, uns mais do que outros, mas quando George Orwell escreveu 1984 não estava a pensar em políticos normais. O doublespeak que ele imaginou não implicava apenas tratar “cortes” por “poupanças”, como há quem com muita desonestidade intelectual sugira – o doublespeak passava por dizer que paz era guerra e amigo era inimigo conforme as conveniências do momento e remetiam directamente para a forma como, na URSS estalinista, se controlava a linguagem e se mudavam as políticas da noite para o dia.

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Isto porque o que conta, para os comunistas, são os fins a alcançar, os meios não interessam. Por isso aquilo que se ataca hoje, pode-se defender amanhã. Em 1975, por exemplo, o PCP tentou primeiro evitar as eleições para a Assembleia Constituinte, depois contrapôs-lhe sempre a legitimidade das ruas e da “aliança Povo-MFA”, no auge da tensão chegou a levar os sindicatos da construção civil a cercar o Parlamento, tudo isto num tempo em que Álvaro Cunhal dava entrevistas garantindo que em Portugal não haveria uma “democracia burguesa”. Depois, passado o 25 de Novembro e aprovada a Constituição, o PCP trocou de barricada e encontrou no texto fundamental a sua nova trincheira. É um salto estratégico que Carlos Brito descreve muito bem nas suas memórias, Álvaro Cunhal – Sete Fôlegos de um Combatente, mas poucos conhecem os detalhes desta viragem, muitos julgando que o mantra de João Ferreira na última campanha presidencial sempre foi o do partido. Não, não foi: só se tornou linha do PCP depois da derrota do PREC.

Mas isto é um detalhe, é política do dia a dia até porque se passa em democracia e com o PCP fora do poder. Diferente, muito diferente, é quando os comunistas tomam o poder. O princípio é sempre o mesmo – os fins justificam os meios. Quaisquer meios. Ora como os comunistas acreditam que estão do lado certo do História, acreditam até que a sua acção acelera História, ainda se sentem mais legitimados a actuar sem limites em função do seu “ismo”. É certo que fazer mal que não lhes foi exclusivo, agindo com o mesmo racional amoral de outros militantes extremistas, como escreveu Isaiah Berlin: “Causar dor, matar e torturar são actos geralmente condenados; mas se não foram cometidos para meu benefício pessoal e sim em prol de um ismo – socialismo, nacionalismo, fascismo, comunismo, de crenças religiosas fanáticas, do progresso, ou do cumprimento das leis da História –, então são actos aceitáveis”.

Quem levou esta lógica a maiores extremos foram os totalitarismos do século passado, totalitarismos de que nos dias de hoje só sobram algumas aberrações comunistas, como a da Coreia do Norte.

Mas se quisermos ter uma ideia de como este tipo de raciocínio toca mesmo as mentes mais brilhantes, basta citar a posição de um comunista não-arrependido, o famoso historiador inglês Eric Hobsbawn que, ainda em 1994, numa altura em que já não havia qualquer dúvida sobre os crimes e os horrores do comunismo e do estalinismo em particular, afirmou que, mesmo que tivesse sabido, em 1934, que “estavam a morrer milhões de pessoas no decorrer da experiência soviética”, não teria deixado de apoiar Estaline porque “a hipótese de poder nascer um mundo novo de um grande sofrimento continuaria merecer ser apoiada”.

A nossa Rita Rato, hoje directora do Museu do Aljube com o beneplácito da câmara de Lisboa e da intelligentsia lusitana, quando não quis responder sobre o que pensava do goulag não foi seguramente porque desconhecesse a sua existência – foi porque lhe faltou a frontalidade de Hobsbawn. Posso estar enganado – o que duvido –, mas se a antiga deputada for realmente uma crente (o comunismo tem muito de fé), então ela também achará que há sacrifícios que são aceitáveis, também pensará que há inimigos que têm mesmo de ser exterminados e que, numa fase qualquer da transição para o comunismo, terá mesmo da haver ditadura do proletariado.

Até lá, a nossa Rita, mesmo directora de um museu do Estado, talvez siga o velho e eterno princípio dos comunistas de contar sempre a história à sua maneira, mostrando umas partes e omitindo outras, como o seu partido acaba de fazer no livro comemorativo dos cem anos, onde ocorreu um “apagão” que fez desaparecer inúmeros críticos. 

Dir-me-ão: mas há tantos comunistas que são tão boas pessoas, tantos que tão genuinamente se preocupam com a sorte do seu semelhante e se inquietam com os destino dos mais desvalidos, como pode um partido de gente assim ser como o estás a descrever? A resposta é fácil e encontramo-la nos livros de História: o problema é que as ideias têm consequências e ideias perigosas, mesmo que aparentemente bem intencionadas, podem ter consequências terríveis. O marxismo-leninismo em concreto sempre teve consequências terríveis – talvez 100 milhões de mortos de consequências terríveis. Nenhum homem bom evitou nesses regimes que muito sangue fosse derramado.

Mas se quisermos ir mais atrás, podemos ir até ao exemplo do mais puro dos homens, do mais exemplar dos revolucionários, do incorruptível Robespierre, que depois se tornaria, em nome da Revolução, da “Santa Revolução”, no sumo sacerdote do Terror.

Mesmo assim eu sei que tudo isto pode parecer estranho e excessivo para quem nunca foi comunista ou nunca estudou o comunismo. Acontece que eu fui comunista – não militante do PCP, mas de uma organização de extrema-esquerda equivalente e que seguia a mesma cartilha –, li muito sobre o que é ser comunista e, depois, sobre a história do comunismo. Não só li como escrevi um livro de memórias sobre esse período da minha vida, que acabou pouco depois dos meus 20 anos (Era Uma Vez… A Revolução).

O corolário dessa experiência é que rompendo com o quadro mental do comunismo, rompendo com um mundo onde nos dizem que somos moralmente superiores aos demais (nunca esquecer que Cunhal escreveu um opúsculo chamado “A superioridade moral dos comunistas”), conhecendo a história e sabendo que ela levou sempre ao mesmo resultado – ditaduras, miséria, guerra, atraso, mistificação – não pode ser a mera indiferença. O comunismo não apenas outro “ismo”.

Da mesma forma que a opressão no Portugal de antes do 25 de Abril acendeu em mim a chama da liberdade e fez de mim um antifascista, fazendo-me correr riscos à minha pequena escala, tudo o que vivi e sei do comunismo fazem de mim um convicto anticomunista, e com muito orgulho. Parece que isso hoje é tabu em Portugal, mas só pode ser porque não aprendemos nada.

Ou talvez alguma coisa tenha ficado, pois a verdade é que, de eleição para eleição o PCP vai definhando. O povo português, como sempre, mostra ser mais perspicaz do que as suas elites, que andam sempre atordoadas com esta ou aquela moda, sem pensarem muito.