Pessimistas que somos ocorre-nos um enfoque nos actuais quadros de incerteza, carência e mudança, onde o desequilíbrio se torna marca de um suposto padrão de normalidade cada vez mais duvidoso no cliché da Saúde Mental, conceito desvalorizado nas reais condições tendentes ao caos. Parece não existir espaço para optmismos nesta matéria, e se dúvidas houvesse, o SNS teve um gasto de 32,5 milhões de euros com ansiolíticos, sedativos e antidepressivos, no primeiro semestre deste ano, aumento de 4,1% face ao mesmo período de 2021, segundo informação do INFARMED.

Estes dados sugerem psiquiatrização dos Portugueses em conflito psíquico e stress de indignação face às dificuldades que atravessam toda a vida em sociedade, da economia à justiça, da saúde à educação, aura de desesperança que leva milhares de pessoas a procurarem o bem-estar da medicação psiquiátrica. Fácil tem sido medicar, tratar o sintoma, camuflar a disfuncionalidade, ou o ganho secundário da doença mental para fugir às responsabilidades. Quando se fala de saúde mental, certo é que, perturbados ou não, todos temos características e comportamentos idênticos. É a quantidade dessas condutas e a intensidade da sua expressão que evidencia o desajuste ao desempenho e nos tira do padrão. Não estamos no outro lado da perturbação, mas antes num limbo periclitante entre as muitas faces da actividade psíquica que contorna a dimensão política, cultural e até filosófica do contexto em que o individuo se insere.

De facto, o contexto é pedra de toque na organização da mente, numa lógica “pescadinha de rabo na boca”, onde o espaço social tanto é precursor como resultado das práticas de uma maioria que tende a tomar-se por normal. Mas, será sempre a maioria normal? Numa aula de psicologia reportada aos anos 90 foi apresentada a seguinte premissa elucidativa: “No Casal Ventoso a maioria dos moradores é toxicodependente. Se a maioria for considerada o normal, logo, ser toxicodependente é normal”.

Arrastando o assunto às actuais dinâmicas, desnecessário é procurar a norma, pois não há equilíbrio exemplar que resista ao funcionamento esquizoide da sociedade, à toa no mundo incoerente. Vejamos, pois, a normalidade líquida de alguns contextos, praxis e escolha da maior parte dos sujeitos.

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Vive-se em narcisismo patológico no campo insano das redes sociais, onde se normalizou a venda da intimidade em posts de vidas perfeitas, tendência com alta perspetiva de rendimento focada em públicos ávidos de felicidade, novo mercadejar cheio de oportunidades, no qual “ensinar a ser feliz” se transformou em filão de negócio bem aproveitado por palestrantes motivacionais feitos à pressa no carrossel da fama – novo “ópio do povo”. Como estará a mente dos jovens a médio prazo, depois de passarem neste laboratório do pensamento onde os modelos, seguidos ao minuto, têm admiráveis vidas virtuais de sucesso sem esforço?

Entre doentes mentais clássicos explicados pela bioquímica e fisiopatologia neuronal, encontramos “novos padecentes” pessoas rotuladas na DSM-V (Manual de Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais) pelas mais diversas contingências comportamentais, do impropério até ao crime, sendo fácil encontrar no saco da desculpabilização e inimputabilidade, transgressores regulares e elites criminosas a usufruírem o produto dos delitos acometidas de Alzheimer e convenientes perturbações psicóticas.

A casuística mental dos cidadãos comuns surge frequentemente associada à degradação social, pobreza, violência doméstica e comportamentos suicidários, problemas que se arrastam de geração em geração, numa sociedade desmotivada, hoje presa ao sentimento de injustiça e autoritarismo político da maioria absoluta representativa, legitimamente empossada para governar sobranceira arrependimentos e contestações.

E, como se nada tivesse que ver com isto, a maioria eleitora responsável assiste agora incrédula ao corolário de decisões que não escolheu, escolhendo, tendo de deglutir entre outros insultos à inteligência, o ajuste directo e canalização de fundos europeus estruturais de investimento a entidades com ligações ao governo. Incompatibilidades éticas normalizadas no Estado de Direito democrático que se firma na ambiguidade de instituições pilares de cidadania. Nem a Igreja, secular, escapa ao descrédito moral depois de décadas a esconder pedofilia e outros abusos sexuais de figuras que julgávamos imunes ao pecado.

Os contextos onde a disrupção passa de excepção à regra são intermináveis, do microssistema familiar ao macrossistema Estado, sabendo-se da sua influência de acordo com o modelo de desenvolvimento humano de Bronfenbrenner (1917-2005). O cruzamento das variáveis psicossociais envolvidas, leva a crer que o escasso desenvolvimento do país é reflexo das muitas lacunas de saúde mental associadas à iliteracia, manifestadas na diversa problemática corrente e em particular na incapacidade de escolha consciente dos actores políticos.

Cansada de esperar por competência política, e não sabendo se ela de facto existe, a “maioria” vive tempos difíceis, com a pobreza errante nas ruas das cidades a cruzar-se com quem espairece o absentismo ao trabalho, ociosidade e outros vícios. Os subsídios sociais alargam-se muito além da população legítima e faz cada vez mais reféns no círculo vicioso de estagnação, assegurado pela “solidariedade” do contribuinte revoltado e já em estado fóbico.

Temos sérias dúvidas de que a saúde mental interesse aos poderes instalados nos múltiplos contextos corporativistas, sendo mais útil um clima de vulnerabilidade, medo e desinformação sobre a “maioria” dócil e fácil de manipular. Quando as circunstâncias nos fazem duvidar da própria sanidade face à disrupção da “maioria”, dita “normal”, é preciso sair do contexto. Não é necessário exibir qualquer excentricidade, ou statement, de comunidades em delírio persecutório, mas antes procurar atitude responsável fundada no conhecimento plural, requisito inegável da Razão.