Os tribunais portugueses têm uma relação difícil com o sexo. Na verdade, têm uma relação difícil com muitos temas, mas quando se trata de sexo é o descalabro. Deve fazer parte da história dos disparates judiciais aquele acórdão que, em 1989, mostrou grande compreensão pelos dois homens que violaram duas jovens, com o argumento de que estas foram, passo a citar, «pedir boleia a quem passava, em plena coutada do chamado “macho ibérico”.» De acordo com o acórdão era «impossível que não [tivessem] previsto o risco que corriam; pois aqui, tal como no seu país natal, a atração pelo sexo oposto é um dado indesmentível e, por vezes, não é fácil dominá-la.»

Mais recentemente, há meia dúzia de anos, depois de condenado em primeira instância, um psiquiatra foi absolvido pelo Tribunal da Relação do Porto de ter violado uma sua paciente, grávida de 8 meses. O argumento é ainda melhor que o da “coutada do macho ibérico”. A paciente (psiquiátrica, lembre-se), grávida de 8 meses, apesar de contrariada, não tinha dado luta suficiente para impedir a violação. (Mais tarde, esta decisão seria revertida pelo Supremo Tribunal.)

Estava eu convencido de que os problemas dos tribunais portugueses com o sexo se limitavam ao sexo à força, quando, mais recentemente, fomos confrontados com outras decisões bastante peculiares, digamos assim.

Recentemente, houve um juiz que foi réu num processo de violência doméstica. Depois de considerado inocente em primeira instância, o Tribunal da Relação de Guimarães condenou-o a uma pena suspensa de 2 anos e 11 meses. Com o que foi considerado como provado — agressões físicas, insultos, limitação de liberdade, etc. —, apenas me surpreende que a pena seja tão leve. Mas o tribunal foi mais longe, considerou como maus-tratos o facto de o réu se ter recusado a fazer sexo com a queixosa durante 11 anos. Insisto, não ponho em causa a condenação por violência doméstica, nem sequer poria em causa que o tribunal argumentasse que a recusa em fazer sexo era um indício de uma personalidade manipuladora. Mas o tribunal vai mais longe e diz que «o facto de ao longo de 11 anos, o recorrido não ter mantido com a ofendida relações sexuais de cópula completa, apesar de ter desejo e actividade sexuais (…), integra um grave e muito intenso mau trato psíquico». Como muito bem explica Inês Ferreira Leite, trabalhos sexuais forçados não têm cabimento na ordem jurídica portuguesa.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Ou seja, de acordo com este tribunal, o homem tinha a obrigação de fazer sexo com a queixosa. Não o fazendo, a pena não é o divórcio ou a separação, mas sim uma pena de prisão (no caso, suspensa). Daqui decorre que, na visão do tribunal, uma pessoa casada deixa de poder dizer não. Pelo menos, não pode dizer não durante muito tempo. Estou já a imaginar, um dia destes, num caso de violação dentro de um casamento, ser considerado como atenuante o facto de o cônjuge violado se recusar à “obrigação” de fazer sexo. Levando ao absurdo, quem viola até poderia alegar legítima defesa contra “um grave e muito intenso mau trato psíquico”. E, apesar de este argumento ser absurdo, com os juízes que temos, não estamos a salvo.

Lembrei-me destes casos quando ontem li a notícia de que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) havia condenado o Estado português por ter reduzido uma indemnização a que uma senhora tinha direito por considerar que o sexo para uma mulher de 50 anos era menos importante do que para uma mulher mais jovem. Vale a pena lembrar o caso. Em 1995, após uma intervenção cirúrgica mal sucedida, uma mulher de 50 anos ficou com lesões irreversíveis que, entre outras coisas, tornavam as relações sexuais muito dolorosas. Depois de ter conseguido em tribunal direito a uma indemnização substancial, em 2014, o Supremo Tribunal Administrativo reduziu esse valor por (entre outros motivos) a queixosa já ter 50 anos à data da operação, «idade em que a sexualidade não tem a importância que assume em idades mais jovens, importância essa que vai diminuindo à medida que a idade avança.» Repare-se: não se argumentou que a mulher, aos 50 anos, apenas teria 40 anos de vida sexual pela frente (presumindo uma esperança de vida de 90 anos) por oposição a uma jovem de 20 que teria 70. O argumento foi mesmo o de que o sexo para uma mulher de 50 é menos importante que para uma de 20 ou 30, o que qualquer sexólogo ou psicólogo desmentirá. Não sei que idade têm os juízes, nem, em particular, a juíza que votou favoravelmente este acórdão, mas, tenham a idade que tiverem, envergonharam Portugal que ontem foi, mais uma vez, e muito bem, condenado pelo TEDH.

Mas vale a pena ver o que têm em comum estes últimos dois casos e que, propositadamente, omiti nos parágrafos anteriores. No caso do homem que se recusou a ter sexo com a mulher durante 11 anos, os juízes consideraram particularmente cruel a recusa porque a mulher queria ter filhos. No último caso, além da idade, os juízes consideraram que o sexo já não era muito importante para a mulher porque ela já tinha dois filhos. Ou seja, a sua função na Terra já estava cumprida. Parece que os magistrados portugueses são seguidores fiéis da doutrina do deputado Morgado, para quem o coito “tem como fim cristalino, preciso e imaculado, fazer menina ou menino”.

Mas só no caso das mulheres. Um dos argumentos do TEDH para condenar o Estado português por discriminação sexual é o facto de, em casos análogos, os tribunais portugueses não se terem lembrado de dizer que para os homens a importância do sexo diminuía com a idade ou com o número de filhos.

Desta “jurisprudência” do Morgado também resulta, naturalmente, que sexo entre pessoas do mesmo sexo tem menos valor. Quando surgir um acórdão a dizer isso, as redes sociais ficarão rubras de fúria acusando os juízes de homofobia, exigindo que se faça uma queixa ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. E, claro, podemos ter a certeza de que teremos incontáveis colunistas a defender os juízes e o seu direito ter uma opinião “politicamente incorrecta”.

Post Scriptum — Na sequência do meu artigo de há duas semanas, recebi um simpático email de Dalila Araújo esclarecendo que teve, de facto, a tutela subdelegada do SIRESP, nos dois anos em que foi secretária de Estado, mas que não houve qualquer renegociação contratual e que apenas lidou com matérias de gestão corrente. Na minha opinião, os conflitos de interesse não ficam totalmente eliminados, mas ficam, sem dúvida, atenuados pelo que agradeço a correcção que me fez chegar.