A alegada falta de médicos em Portugal tem sido usada amiúde quer por sucessivos governos quer pela oposição, com os mais variados fins. Seja para justificar a criação de mais cursos de Medicina em Portugal, seja para entregar um número crescente de unidades de saúde à gestão privada. Todos os argumentos servem para esconder o real problema do Serviço Nacional de Saúde: falta de planeamento e de capacidade financeira para a contratação de mais profissionais de Saúde.

Nas últimas duas semanas, os meios de comunicação social nacionais foram inundados com notícias que davam conta do encerramento de diversos Serviços de Ginecologia-Obstetrícia por falta de médicos especializados capazes de preencher todas as vagas das escalas. Há, inclusive, unidades hospitalares que anunciaram já o número mínimo de dias que os seus serviços vão estar encerrados, por falta de médicos, sobretudo, até final do verão.

A notícia, assustadora, pela forma como deixa desprotegidas centenas de mulheres grávidas e milhares que necessitam de cuidados de Ginecologia-Obstetrícia, na verdade só surpreende quem tenha acabado de chegar a Portugal e não conheça minimamente a realidade do Serviço Nacional de Saúde.

Este é um problema recorrente e que apenas nos últimos dois anos não teve uma grande repercussão mediática fruto de todo o drama vivido com a COVID-19 e os seus impactos no acesso a cuidados de saúde diferenciados.

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A escassez de médicos no Serviço Nacional de Saúde não é de hoje. Ano após ano, com especial incidência no verão, sucedem-se as notícias de encerramentos temporários de serviços de urgência, de salas de parto, salas cirúrgicas ou o adiamento sucessivo de consultas e tratamentos. É, lamentavelmente, natural que estas situações se repitam. Os médicos, tal como qualquer outro profissional, têm direito ao seu período de gozo de férias. É mais do que justo, em especial quando falamos de pessoas que dia após dia dão a sua vida a cuidar dos outros.

Porém, em escalas cada vez mais vazias de médicos do quadro hospitalar e dependentes da contratação de tarefeiros, qualquer falta inesperada de um médico tem consequências assustadoras.

Mas nada disto nos deveria surpreender. O problema está identificado há demasiados anos. Falta a coragem política para o resolver.

Em Portugal não faltam médicos. Em dezembro de 2021 estavam inscritos na Ordem dos Médicos um total de 59.545 médicos (convém saber não confundir o total de médicos inscritos com o total de especialistas, dado que há médicos que acumulam várias especialidades). Destes, 14.276 tinham 65 ou mais anos, ou seja, podiam aposentar-se do SNS.

Restam assim 45.269 médicos perfeitamente capazes para trabalhar no Serviço Nacional de Saúde, mesmo que nestas contas incluamos os dez mil médicos com idades compreendidas entre os 50 e os 65 anos e que, por isso, estão já legalmente dispensados da totalidade do serviço de urgência (a partir dos 55 anos), ou do serviço de urgência noturno (a partir dos 50 anos).

Mas se olharmos para os dados mais recentes do Ministério da Saúde, trabalhavam no SNS, em maio deste ano, um total de 20.877 médicos especialistas e 11.149 internos de Formação Geral e de Formação Específica. Ou seja, em maio passado, havia no SNS 32.026 médicos.

Temos então aqui um diferencial de cerca de 13 mil médicos que, muito provavelmente, prestam apenas serviço no setor privado ou social. Sendo tão antiga a falta de médicos para completar escalas, por que motivo o Ministério da Saúde não investe na contratação de alguns destes 13 mil médicos? Por que motivo prefere a tutela gastar mais de cinco milhões de horas extraordinárias aos médicos que já estão no sistema? Por que motivo prefere o Governo gastar milhões de euros na contratação de tarefeiros, com todas as desvantagens que estas contratações representam em termos de dinâmica de equipa, sensação de justiça, e conhecimento entre os diferentes elementos que as compõem?

Quarenta e seis anos passados da maravilhosa aprovação do “Despacho Arnaut”, que daria origem à criação do SNS, é tempo de repensar verdadeiramente o que pretendemos para o nosso melhor “seguro de saúde”. Vamos continuar a anunciar a aplicação de pensos rápidos e de medidas paliativas, aliviando a consciência durante três ou quatro meses? Ou vamos enfrentar o problema de frente e criar uma estratégia que volte a fazer do SNS um sistema de saúde verdadeiramente atrativo para os médicos trabalharem e para servir os utentes condignamente?

Com os milhões de euros provenientes do Plano de Recuperação e Resiliência, o Governo português tem uma oportunidade única de proceder a uma reforma profunda que alavanque o SNS para o Séc. XXI. Assim haja vontade para que daqui a um ano, ou quando chegarmos ao inverno, não voltemos a escrever a crónica de um fim há muito conhecido.