A expectável criação de um Passe Verde Digital ou, dito de outra forma, um Passaporte Covid-19, tem merecido o apoio de várias instituições europeias e mundiais, incluindo altos representantes da Organização Mundial da Saúde. Espanha, por exemplo, pondera avançar com este documento já em maio. Um documento que, em determinados contextos, confira algum tipo de certificado de vacinação para a Covid-19. Porém, a nível ético e deontológico, este Passaporte Covid coloca sérias questões éticas e legais que, entendo, devem ser consideradas pelas autoridades dos vários países antes da sua implementação.

É certo que a pandemia pelo SARS-CoV-2 veio colocar o problema da saúde global em novos termos, nomeadamente a necessidade de políticas globais para problemas globais, desde logo no plano da saúde pública. Percebe-se,  também, que a necessidade de retomar o desenvolvimento económico, por exemplo restabelecendo o tráfego aéreo, nomeadamente por motivos de turismo ou por razões profissionais e empresariais, justifique medidas inovadoras, que num contexto pré-pandémico seriam porventura impensáveis.

Mas implementar nas fronteiras portuguesas ou da União Europeia um Passe Verde Digital – atestando que uma pessoa em concreto foi vacinada para esta doença – não pode, em caso algum, discriminar os vacinados dos não vacinados. Porque não é uma escolha pessoal a vacinação, mas, antes, decorre de uma priorização social efetuada por cada Estado-membro de acordo com critérios por si determinados. Este “ranking social” implementado noutros países a Oriente é, por razões óbvias, contrário à tradição europeia de defesa dos direitos humanos. E pode abrir a porta a novas formas de controlo social, como parece haver já indícios, aliás, na Assembleia da República.

Pelo que devem existir alternativas eficazes a este Passaporte Covid, como, por exemplo, a testagem rápida e efetiva a todos aqueles que, querendo viajar, não tiveram ainda a oportunidade de ser vacinados. Porém, deve ter-se em atenção que os testes de PCR para a doença aguda só são positivos cinco dias após a infeção. Isto é, os testes são falsamente negativos por quatro ou cinco dias mesmo em pessoas com Covid-19. Mesmo os testes serológicos de anticorpos, ou os testes rápidos de antigénio, demonstram taxas conhecidas de falsos negativos e de falsos positivos, pelo que nada substitui a prevenção da transmissão através da literacia em saúde e de medidas de higiene social.

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Por outro lado, a urgência de reabrir a economia pode levar à tentação de utilizar o Passaporte Covid com outros objetivos e noutros contextos. Quando o país começar a desconfinar, pode ser sugerida a utilização de certificados que comprovem a vacinação para aceder a centros comerciais ou a grandes superfícies, como acontece já nalgumas partes do mundo. Nestes casos, não é praticável a testagem, mesmo rápida, pelo que é inaceitável que as pessoas não vacinadas sejam impedidas de participar nas atividades económicas, sociais ou mesmo culturais. Este mito de uma “saúde limpa” originará, seguramente, uma sociedade segmentada e uma cidadania a duas velocidades.

Mais ainda, quando se sabe que este Passaporte Covid não tem em atenção a possibilidade da vacina não ser eficaz contra novas variantes da doença. E, se é certo que a vacina impede em larga medida os casos graves da doença, não é claro que impeça a sua transmissão, podendo, por isso, ser ineficaz quanto ao objetivo pretendido, ou seja, impedir a transmissão comunitária deste vírus.

Em síntese, a implementação generalizada do Passaporte Covid pode originar inaceitáveis situações de discriminação injusta e de restrição artificial de direitos básicos de cidadania, incluindo violações de privacidade e o acesso não autorizado a dados pessoais. E, se a pandemia da Covid-19 veio confirmar que existem bens públicos globais e que a comunidade internacional deve mobilizar-se para assegurar um desenvolvimento comum e sustentável, deve fazê-lo em conformidade com as conquistas civilizacionais que são a marca genética das sociedades livres.