Vai um enorme barulho mediático na Europa e nos EUA à volta do suposto retrocesso civilizacional configurado no facto de o Supremo Tribunal norte-americano ter tido a ousadia (na voz dos descontentes) de desconsiderar a prática voluntária e forçada ou induzida do aborto como um direito constitucionalmente reconhecido.

A pergunta certa é outra: como foi possível ter-se constitucionalizado um dia o direito a matar?

O verdadeiro alibi de uma (falsa) questão que tem sido colocada relativamente à vida intrauterina.

Um feto humano (chama-se feto o estágio de desenvolvimento com início após nove semanas de vida embrionária, quando já podem ser observados braços, pernas, olhos, nariz e boca, e vai até o fim da gestação) é um ser humano, uma pessoa, ou não?

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E o estágio anterior, o embrião humano, o que é?

Para desculpar o indesculpável, parece que só o recém-nascido, ou seja, o feto humano depois do parto, é pessoa e pode ser constitucionalmente protegido (na medida de que o direito à vida é inviolável).

Nesse falsíssimo debate, como é óbvio, vale simplesmente a vontade e a lei do mais forte (dos/das que induzem o aborto).

O embrião e o feto não têm, evidentemente, nenhuma palavra a dizer.

E não é disso rigorosamente – a protecção dos mais fracos e indefesos – de que trata, ou deve tratar, em primeira linha uma constituição?

“Algo vai podre no reino da Dinamarca.” !

E no outro lado da linha da vida, a par desta controvérsia, no meio do caos das urgências obstétricas, do colapso anunciado do SNS e em pleno e mal disfarçado fiasco inflacionário, o parlamento português não tinha mais nada para debater (pela terceira vez) do que a morte medicamente induzida e assistida dos adultos?

Não tinha, pelos vistos.

E pergunta-se: quantas mais vidas humanas serão reivindicadas (aqui na fragilidade da sua idade e/ou da sua doença e/ou do seu abandono e/ou do seu descarte) pela violência intrínseca destes projectos?

Sob o pretexto falacioso de uma “decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja actual e reiterada, séria, livre e esclarecida”, pura e simplesmente mobiliza-se a morte.

Num caso e no outro, a morte dos mais fracos, indefesos e desprotegidos é autorizada e praticada ou ajudada por profissionais de saúde.

Tudo isto, forçosamente, tem de transportar-nos, moralmente, para outro cenário.

O cenário da guerra na Ucrânia, onde a morte, lamentável e criminosamente, a morte de milhares de inocentes, foi autorizada e é praticada e mobilizada, diariamente, pela vontade injustificada, injustificável, cega e tirânica dos dirigentes russos.

Também aí, na Ucrânia, como no direito internacional, pelos vistos, campeia a “lei do mais forte”. Porque sim.

Para os dirigentes russos, a Ucrânia nunca foi, não é, nem nunca poderá ser um país soberano e independente.

Para os russos, evidentemente, os ucranianos são menos pessoas dos que os russos.

Se calhar, nem são pessoas. Como os fetos e os embriões humanos.

Morrem sempre muitas pessoas, demasiadas pessoas, pela hipocrisia, cobardia e desonestidade de outras.

Quando lavamos as mãos dos problemas.

Quando cedemos nos princípios e nos valores.

Na representação repetida da tragédia humana: não querer ver o outro.

O passo absolutamente ao lado.

A expressão da doença humana mais perigosa, mais progressiva e parece hoje que incurável e irreversível, a pandemia moral.

Uma praga assustadoramente mortal.

Andam muito enganados os que supõem que o mal objectivo tem graus, que há males menores.

Não tem, não há.

Há o mal, ponto final.

Um só mal.

Da brutalidade abjecta da invasão da Ucrânia à discussão semântica sobre a vida.